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A incultura totalitária

Por: Cláudio L. N. Guimarães dos Santos

A internet só é útil para quem dela se serve com inteligência e discernimento; empregada com más intenções, ela pode levar ao oposto da liberdade
No conto "A Hora e Vez de Augusto Matraga", Guimarães Rosa nos fala de um homem perdido pelas veredas da vida, mas que, no dia da sua morte, imprime à própria história um sentido que jamais tivera.
Quantos de nós, quando chegar o momento, conseguirão fazer o mesmo? Trata-se, sem dúvida, de questão crucial, pois, como seres semióticos, não nos é dado viver sem perseguir significados -muito menos sem sermos por eles perseguidos.
Assediados por informações redundantes, a maioria dos humanos pós-modernos a elas reagem de maneira catastrófica: ora absorvem as notícias como se fossem parasitas, alimentando-se de "bits" que já chegam digeridos, ora engolem, sem critério, toneladas de conteúdos, para depois sofrerem de pantagruélica indigestão.
A internet é um caso exemplar. Por meio dela -creem os fiéis mais ardorosos- seria possível transmitir ao cidadão informações não distorcidas pelo "filtro pernicioso" da imprensa e também elevar o nível cultural do povo (há mesmo visionários que já sonham com democracias plebiscitárias, onde as questões relevantes seriam decididas, "de casa mesmo", pelo tamborilar obediente de milhões de dedos operosos no teclado místico da pátria).
Será isso verdade?
Não creio. A internet só é útil para os que dela se servem com inteligência e discernimento e que sabem, de antemão, o que desejam encontrar. Graças a ela, por exemplo, o amante de música pode ter rápido acesso a gravações diferentes da sua obra predileta.
Um indivíduo, porém, que não tiver recebido uma boa educação musical -com professores vocacionados, competentes e bem pagos-, dificilmente optará por ouvir a "Grande Fuga", de Beethoven ou "As Rosas não Falam", de Cartola, ignorando até que existam. Ele preferirá se divertir com algum lixo midiático que lhe tiver sido inculcado de maneira sorrateira.
De nada lhe servirá a hipertextualidade da internet, com as suas infinitas possibilidades semânticas, que é tão incensada por "ciberfilósofos" iludidos com o fetiche da técnica. O mais das vezes, navegará pelas rotas congestionadas "por onde vai todo mundo", reafirmando o gregarismo acrítico que marca esta época em que avultam a solidão coletiva e a servidão voluntária.
É por isso que a internet, se empregada com más intenções, pode levar ao oposto da liberdade e conduzir, pela ladeira do populismo conformista, ao pântano dos regimes totalitários.
Neste mundo tão "virtual", onde tudo parece ser o que não é, vale a pena lembrar que o meio não é nunca a mensagem, apesar do que dizia McLuhan (mais citado que lido).
Para além dos apelos da rapidez insensata e da novidade banal, brilha a sabedoria profunda das verdadeiras obras-primas, a única capaz de dar sentido à "hora e vez" de cada pessoa.
Um grande conto será sempre grande, descortinando panoramas insuspeitados, esteja escrito em papel de pão, embutido num holograma ou estampado numa tela polvilhada de hyperlinks. Guimarães Rosa, sem nunca ter visto a internet, sabia disso muito bem.
CLÁUDIO L. N. GUIMARÃES DOS SANTOS, 51, escritor, artista plástico, médico e diplomata, é mestre em artes pela USP e doutor em linguística pela Universidade de Toulouse-Le Mirail (França).Blog: *http://perplexidadesereflexoes.blogspot.com/*  





MULHERES: Desaponto e futuro
 Por: 

Marta Suplicy

Durante anos, o movimento das mulheres acreditou, e eu também, que o caminho fundamental para a emancipação da mulher era o da educação. Este seria o passaporte para a igualdade de gênero.
Certamente é um instrumento essencial para a aquisição de autonomia financeira, autoestima e inserção no mundo. Mas o último Censo do IBGE mostrou o quanto, mais do que educação, é necessário para a desejada igualdade de gênero acontecer.
Embora hoje a mulher tenha dois anos de escolaridade a mais que o homem, ela ganha em média 30% menos do que ele. Agora, o que é chocante: quanto mais "estudada" essa mulher, maior a diferença entre o seu salário e o do homem com a mesma escolaridade.
Isso não quer dizer que, na baixa faixa de renda, as mulheres estejam bem. Entre os que recebem até meio salário mínimo, 15,2% são mulheres e 4,8% são homens. A partir de um salário mínimo até as maiores faixas de rendimento, a diferença nos percen-
tuais é favorável aos homens, com as mulheres cada vez menos presentes. Os homens são mais de 80% dos que recebem mais de 20 salários mínimos.
O Censo também apurou que 39% dos lares são providos só por mulheres e 30% as têm como coprovedora. O sustento familiar e a carga dupla de trabalho, frutos de uma emancipação complexa, aumentaram as responsabilidades da mulher. As mudanças para enfrentar o novo papel não acompanharam tais demandas, bem como a divisão do trabalho não segue a forma exigida pela nova conjuntura.
Alguns dizem: "Não procuraram? Agora se virem". Não, ninguém procurou e muito menos planejou dessa forma tão perversa. Os séculos de opressão e o fato de a mulher ter entrado no mercado de trabalho como um "favor" do mundo masculino tiraram a força de qualquer negociação. Além da culpa, mal elaborada, por não dar conta de tudo.
Os caminhos para sair dessa situação mostram-se mais complexos do que só a conquista de um lugar na universidade. As trilhas são cheias de desvios e as avenidas atravancadas. Mas algo fundamental mudou. O psicanalista francês Jacques Lacan dizia que a palavra pertencia ao homem e o silêncio, à mulher. Entretanto não foram necessários mais do que 50 anos para mostrar o equívoco de Lacan.
Nós, mulheres, apesar do ritmo vagaroso e das expectativas ainda frustradas, estamos construindo uma palavra feminina. Seja na ciência, no Estado ou na economia, estamos mudando o jeito masculino de funcionar. A tal inteligência emocional, tão prestigiada, é a nova ordem simbólica que une a subjetividade e o afeto ao bom desempenho técnico. Talvez por aí, sem abandonar as lutas de sempre, conquistemos a igualdade. 
Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/fsp/opiniao/11143-desaponto-e-futuro.shtml>



Pais Inteligentes Enriquecem Seus Filhos

Por: Gustavo Cerbasi

Investir é uma arte

Multiplicar dinheiro requer determinadas habilidades. Porém, engana-se quem pensa que os melhores investidores tenham necessariamente formação em economia, em finanças ou em qualquer outra ciência exata. Quanto mais me envolvo com eventos e atividades ligadas aos diversos mercados de investimento mais conheço pessoas de sucesso que poderiam ser estereotipadas de qualquer coisa, menos de investidores.
Você provavelmente já ouviu falar de alguém que começou do nada e prosperou muito nos negócios, ou de proprietários de diversos imóveis que mal conseguem assinar o nome. No mercado de ações, admiro diversos casos de pessoas que fizeram fortuna após amealhar uma herança e colocá-la para multiplicar em um nível de risco nunca antes assumido na vida.
O que faz uma pessoa sem ensino médio se tornar um magnata dos imóveis ou um septuagenário iniciar investimentos em ações e colher resultados excepcionais em dois ou três anos não é um dom natural ou formação específica em determinada área do conhecimento.
O sucesso nos investimentos independe da idade, mas depende principalmente da dedicação que o investidor tem ao aprendizado e ao acompanhamento do mercado.
Admiro, mas não considero uma surpresa, quando investidores começam tarde e colhem bons resultados. Pessoas com mais experiência de vida tendem a errar menos nos investimentos, pois costumam ter mais paciência para o aprendizado, menos pressa por resultados e maior domínio de sua agenda para se envolverem com as fontes de informação.
Em outras palavras, bons resultados nos investimentos resultam da dedicação e do zelo pela carteira, qualidades nem sempre cultivadas pelos apressados jovens da geração Y, que têm urgência por resultados e tentam abraçar toda informação possível, sem tempo de digeri-la.
Não é exagero comparar investimentos ao mundo da arte. Um bom artista busca inspiração antes de começar sua obra, estuda continuamente, desenvolve técnicas próprias, pesquisa as técnicas de outros artistas, faz experiências sem compromisso e agrega valor a suas criações à medida que dedica mais tempo em busca da perfeição. Mesmo assim, sabe que a perfeição é inalcançável. Os bons investidores que conheço fazem o mesmo.
Um bom artista é também um especialista. Escultores procuram se dedicar cada vez mais às esculturas, pintores às telas, artistas plásticos às formas e materiais, músicos aos instrumentos, enquanto grafiteiros colhem resultados com tintas e com superfícies. Raríssimos e muito valiosos são os casos de profissionais que obtêm diferenciais e grande valor com diferentes técnicas artísticas. Geralmente, são profissionais com vasta experiência em uma especialidade artística, que criaram uma marca e podem se dar ao luxo de começar a estudar outra especialidade.
Tentar investir em mercados totalmente diferentes, como ações, imóveis e pequenos negócios, é improdutivo e mais arriscado, pois nessa situação o "artista" se vê obrigado a desenvolver simultaneamente diferentes técnicas. Diversificar é saudável, mas também é melhor quando feito em um só mercado que conhecemos bem.
Sugiro a quem está engatinhando no mundo dos investimentos, ou mesmo àqueles que investem há tempos sem colher bons resultados, que mudem a maneira de tratar sua riqueza. Que, em vez de buscar dicas e fontes de informação dispersas, escolham um mercado e comecem -ou recomecem- através do aprendizado de base. É assim que artistas começam.
Não importa se seu interesse é por imóveis, por franquias, por ações ou por outro mercado. O ideal é dedicar tempo aos cursos, aos eventos com outros investidores, às leituras especializadas e ao convívio com aquilo que se chama de mercado, mas que nada mais é do que o meio em que outros artistas expõem suas técnicas e trocam experiências.
Com dedicação, a técnica do investidor tende a se aproximar da técnica dos grandes mestres. Nos investimentos, felizmente, copiar não é plágio.


GUSTAVO CERBASI é autor de "Pais Inteligentes Enriquecem Seus Filhos" (Ed. Sextante) e "Investimentos Inteligentes" (Thomas Nelson Brasil).




Morte / Du Bocage
Por: WALTER CENEVIVA

Recordo Verissimo: "O melhor modo de homenagear os mortos é tratá-los bem, com amor se possível, enquanto estão vivos".

MANUEL MARIA Barbosa du Bocage (1765/1805), um dos maiores poetas líricos da língua portuguesa, bebeu todas nos seus 40 anos de vida. Num soneto célebre reconheceu sua vida insana no tropel das paixões que o arrastavam e, já doente, pediu que soubesse morrer com honra aquele que viver não soube.
A preocupação do poeta talvez seja a de boa parte dos humanos. Por isso há um dia para homenagear os que faleceram, o que é justo. Com os mortos, os dias para serem lembrados são todos.
No direito ainda persiste o gosto pelo latim. O ser humano que partiu passa a ser o "de cujus", aquele do qual se cuida na sucessão hereditária. Mesmo sem a vida, que já não tem, ainda repercute na alteração de contrato que assinou (às vezes até para o extinguir) e, na versão mais comum, se torna o "autor da herança". Essa estranha "autoria" é daquele que, tendo falecido, cria a sucessão hereditária. O conjunto dos bens e direitos deixados por ele se transmite "desde logo aos herdeiros legítimos e testamentários" (Código Civil, art. 1.784).
Há ainda as mortes legais daqueles que não se sabe se efetivamente morreram. Apartaram-se de suas famílias e de seus conhecidos. Sumiram sem deixar notícia. O direito denomina a situação criada de morte presumida, possível na paz e na guerra. 
Há situações que criam maiores embaraços, na incerteza de filiações duvidosas, na existência de dois ou mais lares familiares e assim por diante. Tornam-se mais caros, no sentido de terem as despesas aumentadas.
Nos acidentes em mar alto ou no ar, um ponto relevante consiste em confirmar a presença dos encontrados na mesma situação: foram comorientes. A lei admite que pereceram simultaneamente.
A comoriência existe, mesmo em terra firme, sempre que não seja possível determinar, na morte conjunta, quem morreu antes. As formalidades são mais complicadas, porque para os que se encontraram nessa situação, confirmado o falecimento, deve ser efetuado o registro civil da morte. A Lei dos Registros Públicos (6.015/73) diz no art. 77 que "nenhum sepultamento será feito sem certidão do registro civil do lugar do falecimento".
A mesma lei dá a regra para as exceções: "poderão os juízes togados admitir a justificação para o assento de óbito de pessoas desaparecidas em naufrágio, inundação, incêndio, terremoto ou qualquer outra catástrofe", feita a prova da presença no lugar do evento, mesmo que não encontrado o cadáver.
O frio direito não esgota o tema. Para todas as alternativas recordo a boa lição de Erico Verissimo, em "Solo de Clarineta":
"O melhor modo de homenagear os mortos é tratá-los bem, com amor se possível, enquanto estão vivos".


http://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidian/ff0511201105.htm



Rubem Alves
por MARINA SILVA
Além do cotidiano

A partir de agora, os leitores de Rubem Alves não terão mais os litorais inundados pelas intensas ondas de suas ideias, avolumadas pelos ventos de sua alma de poeta.
Sua afirmação "minha alma é movida pelas ausências" revela em carregadas tintas o que quase sempre fazemos questão de velar: que nos movemos mais pelo que nos falta do que pelo que possuímos.
Só os que se percebem incompletos autorizam-se a parar antes de serem parados, a mudar antes de serem mudados, a revelar suas ausências antes de serem delatados pelas interrogações da presença.
Há muitos anos guardo, do educador Rubem Alves, a lição da incompletude humana da qual só o amor nos redime. E educação é um outro nome da palavra amor.
Do filósofo, esforcei-me para reter o pensamento amplo que descortina a história da humanidade, buscando superar a era da informação em busca de uma era da sabedoria. Do cronista, saboreei o café cotidiano, capaz de dar gosto ao dia e à semana.
Mas foi o poeta Rubem Alves que encontrei, mais uma vez, em sua despedida dessas páginas de jornal.
É a ele que respondo, nessa incompleta homenagem com as palavras que extraí -nas linhas e entre elas- de seu texto denso e profundo:

Disseste tudo ao dizer:
Quando a ausência de mim
Fizer presença em meu ser,
Visitarei a mim mesmo,
Para não me afastar de você.

Quando o peso do dever
Em mim soterrar a alma
Entre os escombros da vida,
Quero flutuar qual pluma
Na leve brisa da calma.

Quando o dizer tiver o poder
De revelar o que não quero,
Paro a pluma, guardo a voz,
Me rebelo no silêncio
Para me manter sincero.

Antes da noção do certo
Se revelar um engano,
Saio do cotidiano:
Adentro em outras rotinas,
Noutros mares vou pescar.

Não quero porto seguro,
Só âncora, vela e mar.
Âncora para ser meu porto,
Vela para me levar,
Mar para, no litoral,
As minhas ondas quebrar.
Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/fsp/opiniao/fz0411201106.htm>


Ensino amplo para mundo mais complexo
 VIVIANE SENNA
 Jovens oriundos de famílias desfavorecidas, mais expostas ao fracasso na escola e na vida, podem mudar seu script com processo educativo consistente
A mais importante constatação amadurecida no Seminário Educação para o Século 21, realizado em São Paulo , é que precisamos dar um passo a mais na construção de uma educação pública de qualidade. Temos de continuar lutando para que as crianças e adolescentes sejam devidamente alfabetizados, dominem a escrita, a leitura e o cálculo, algo que ainda estamos longe de conseguir.
Mas temos de ir além, oferecendo já ao aluno um processo educativo que lhe permita desenvolver competências mais amplas, como a autonomia, a criatividade inovadora, a capacidade de trabalhar em equipe, a curiosidade investigativa, entre outras, denominadas academicamente como competências não cognitivas.
Participaram do seminário alguns dos maiores especialistas na ciência do aprendizado e do desenvolvimento humano, como James Heckman, ganhador do Nobel de Economia além de educadores, gestores, organismos multilaterais, organizações que trabalham com escolas e mobilização da sociedade.
Concordamos quanto ao papel duplamente positivo do desenvolvimento das competências não cognitivas na escola.
De um lado, impactam diretamente o desenvolvimento intelectual dos alunos e o seu desempenho; ao mesmo tempo, preparam crianças e adolescentes para lidar com as exigências do mundo do trabalho e da economia global, da participação social nas cidades e nas redes, diante de questões complexas das ciências e do ambiente, da ética, da democracia e da sustentabilidade. Elas sustentam os valores.
Estudos de neurocientistas e economistas demonstram estatisticamente que esse grupo de competências tem o mesmo poder que as competências cognitivas na proficiência dos alunos, medida pelas notas, pela redução do abandono e pela escolaridade final atingida. 
As competências não cognitivas têm ainda maior impacto que as cognitivas na determinação do sucesso e dos níveis de bem-estar pessoal e social, tais como medidos pela redução nos níveis de criminalidade e tempo de desemprego, pela maior estabilidade conjugal e familiar, menor incidência de doenças como depressão, obesidade e alcoolismo e por maior longevidade.
Todo educador sabe que o processo educativo requer do aluno autoestima, perseverança e outras capacidades emocionais.
O professor busca trabalhar com isso, mas esse esforço ainda não é nomeado e valorizado como tal. Sabemos que o trabalho para desenvolver as competências não cognitivas tem de envolver toda a rede escolar. 
O currículo regular deve incorporar conteúdos, práticas de ensino e de gestão para conciliar o aprendizado das disciplinas e a construção de atributos pessoais múltiplos.
A melhor notícia que compartilhamos é que a ciência vem confirmando ser efetiva nessa transformação pessoal. Crianças e adolescentes de famílias desfavorecidas, mais expostas ao fracasso na escola e na vida, podem mudar seu script com um processo educativo consistente ao longo dos ensinos fundamental e médio. 
A família e a comunidade são responsáveis, mas sabemos que a escola deve -e pode- ser uma grande força a romper o ciclo intergeracional de pobreza e desesperança. 
Nosso seminário faz, portanto, uma convocação para que a escola possa oferecer, como política pública e em larga escala, uma educação que salde as dívidas acumuladas dos séculos 19 e 20 e que, ao mesmo tempo, habilite os alunos a viver plenamente, com valores e competências para fazer frente aos desafios do século 21.
VIVIANE SENNA, psicóloga, é presidente do Instituto Ayrton Senna.

http://www1.folha.uol.com.br/fsp/opiniao/fz0111201107.htm

A narrativa biográfica

 A narrativa biográfica ganhou feições modernas e autonomia literária no século 20, tanto no Brasil como em outros países. Recentemente, o gênero passou a espelhar as contradições de uma época em que o indivíduo se reconfigura entre o narcisismo midiático e a cultura das celebridades.




OTAVIO FRIAS FILHO
ilustração ELISA VON RANDOW
A biografia sofre conhecidas limitações como gênero literário. Apesar dos grandes escritores que se dedicaram a ela e dos biógrafos que deixaram obras-primas, as restrições nem por isso deixam de ser apontadas. 
Tendo de se ater a fatos, o biógrafo jamais alcança a plena autonomia criativa do poeta e do romancista. Tendo por assunto a vida de um personagem, ele tampouco atina, se não de relance, com a compreensão profunda de uma época, própria do historiador. Além disso, há os percalços inerentes ao gênero. Como confiar no biógrafo? Parecido com o tradutor, a quem às vezes é comparado, ele também é um traidor. Tenderá a minimizar ou suprimir certos aspectos desfavoráveis na atuação do biografado, a confiar em sua versão nos pontos controvertidos, a compreender demais seus motivos e fraquezas. Ou, no caso das biografias ditas não autorizadas, destinadas a provocar sensação, fará quase o contrário disso.

MAGNETISMO Precisa-se, então, de biógrafos imparciais e neutros. Mas estes quase sempre se revelam os menos aptos a extrair da massa de eventos biográficos um sentido revelador, uma síntese significativa. 
Parece que a boa biografia depende do magnetismo entre duas personalidades -de uma dialética peculiar em que o biógrafo cria, por sua própria conta e risco, o sentido apenas sugerido na vida do biografado, dispersiva e amorfa como a de toda pessoa. "A Vida de Samuel Johnson" (1791), de James Boswell, considerado o maior clássico do gênero em inglês, é resultado de uma cumplicidade desse tipo. Johnson era a figura literária suprema em Londres, onde reinava como crítico temido e dicionarista incontestável, quando Boswell, um jovem literato recém-chegado da Escócia, conquistou sua amizade.
Durante 11 anos, Boswell perseguiu Johnson com a obsessão de um repórter, registrando episódios pitorescos e frases iluminadoras. Chegou ao cúmulo de montar situações, como um jantar a que compareceria um desafeto de Johnson sem que este soubesse, a fim de observar as reações do sábio. 
No afã de pintar um retrato exaustivo e irretocável, que incorporasse "até as verrugas", Boswell produziu um livro com mais de mil páginas, hoje pouco legível, mas que teve poderosa influência no gênero biográfico que floresceria desde então.

APELO A biografia veio a exercer apelo de leitura quase universal, sobretudo numa época, como a nossa, em que o mecanismo midiático projeta as personalidades famosas num perímetro antes inimaginável, ao mesmo tempo que glamuriza sua intimidade, convertida em produto simbólico. 
Nos Estados Unidos, a biografia é o quinto gênero mais editado, depois de ficção, religião, economia e ciência. Vendeu-se cerca de um milhão de exemplares de biografias no mercado brasileiro no ano passado. Quase toda lista de "dez mais" inclui algumas delas. Se nos EUA a explosão biográfica remonta aos anos 1960, ela teve início no Brasil na década de 1990, com as obras de Ruy Castro (sobre Nelson Rodrigues), Fernando Morais (Assis Chateaubriand) e Jorge Caldeira (visconde de Mauá), três escritores egressos do jornalismo. 
Seus livros combinavam pesquisa meticulosa e narrativa carismática; apesar de longos e bem documentados, garantiam leitura cativante. Como compete ao biógrafo ambicioso, adotavam um enfoque atual de seus protagonistas, apresentados no contexto de seu tempo, mas à luz do nosso. Conduzidos de modo profissional, os lançamentos pareciam preparar o transplante para outros meios, como TV e cinema. 

TRADIÇÃO O êxito desse novo veio biográfico, enriquecido pela contribuição de outros autores, joga uma cortina de esquecimento, entretanto, sobre uma respeitável tradição. Na última Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), em julho, o poeta e tradutor Paulo Henriques Britto lamentou que o Brasil não tivesse uma sólida vertente biográfica. Juízo questionável em autor tão qualificado, a declaração talvez se deva menos ao ambiente de entrevista onde ocorreu do que ao ofuscamento que a onda biográfica dos últimos 20 anos gerou.
Na terra do "homem cordial", onde a pessoalidade prevalece sobre normas e fatores gerais, o relato biográfico logo prosperou. Em meio a uma profusão de biografias anódinas e encomiásticas, destinadas a entronizar a personagem escolhida num panteão de gesso, destacam-se livros de valor duradouro. Despontam entre eles, por exemplo, os estudos de Lucia Miguel Pereira sobre Machado de Assis (1936) e de Francisco de Assis Barbosa sobre Lima Barreto (1952).
Para além desses clarões confinados ao âmbito literário, a biografia brasileira se estendeu a empreendimentos de mais envergadura, nos quais, ao focalizar a vida de um estadista ou de um punhado deles, descortina-se uma era. 
O melhor exemplo é a mais célebre biografia escrita no Brasil, "Um Estadista do Império" (1896), na qual Joaquim Nabuco narra a trajetória pública do pai, considerada uma das melhores reconstituições políticas do Segundo Reinado. O historiador Octavio Tarquínio de Sousa levou a termo tarefa semelhante em sua série "História dos Fundadores do Império do Brasil" (1957), sobre d. Pedro 1o, José Bonifácio, Bernardo Pereira de Vasconcelos, Evaristo da Veiga e Diogo Feijó. 
Afonso Arinos emulou Nabuco ao escrever o livro intitulado, com algum exagero, "Um Estadista da República" (1955), também sobre seu pai, Afrânio de Melo Franco -personagem mais periférico do que o senador Nabuco de Araújo. Mas a obra constitui, ao lado de sua biografia do presidente Rodrigues Alves, um substancioso painel da vida política e cultural na República Velha. 
(Historiador-jornalista dos nossos dias, Elio Gaspari terá se inspirado nesses antecessores ao condensar quase duas décadas de história política numa espécie de biografia, ou, antes, na narrativa da parceria entre "o sacerdote" e "o feiticeiro", os generais Geisel e Golbery, crucial na instalação e na derrocada do regime militar.)
Certos personagens que chegaram ao reconhecimento unânime, como Ruy Barbosa e o próprio Nabuco, foram alvo de sucessivas investidas em livros que se leem até hoje com proveito, como os de Luís Viana Filho e Álvaro Lins (este sobre o barão do Rio Branco). É verdade que essa alentada tradição biográfica, desenvolvida entre o início e a metade do século passado, nutrida numa vaga obrigação patriótica das belas-letras de reverenciar o grande personagem da história ou do saber, foi quase sempre convencional, quando não oficiosa. 
São trabalhos amparados numa documentação admirável naquelas épocas em que não havia os recursos eletrônicos de hoje, nem a política de adiantamento das editoras ou as atuais equipes de pesquisadores-auxiliares. São livros instrutivos e muito bem escritos, apesar do inevitável timbre antiquado da prosa e do laivo cerimonioso que a percorre. Mas ainda não são biografias modernas.

PRECURSORES Os precursores da biografia, ao menos na cultura ocidental, foram Plutarco, Suetônio e Tácito, autores que viveram na segunda metade do século 1o. 
Escrevendo em grego, Plutarco justapôs figuras históricas e semilendárias da Grécia e de Roma, agrupando-as nos pares de seu famoso "Vidas Paralelas". Os outros dois, escrevendo em latim, deixaram esboços biográficos de uma sucessão de imperadores romanos. 
É notável que os detalhes escandalosos e os episódios anedóticos, longe de ser invenção recente, já figuram nesses primórdios do gênero. Suetônio narra pormenores da intimidade sexual de Calígula que não destoam do filme pornográfico feito nos anos 1970 sobre a corte do tirano. Várias das imagens forjadas pelo biógrafo atravessaram os séculos, como Nero a tocar lira enquanto Roma arde ou lastimando, ao morrer, o artista que o mundo perdia.
Existe um substrato qualquer de curiosidade frívola e apetite pelo escabroso em todo psiquismo humano; a anedota biográfica decerto responde a uma combinação sublimada desses impulsos menos confessáveis. 
Mas nos autores clássicos ela serve ao propósito de sintetizar as configurações exemplares da virtude e do vício. O episódio anedótico é invocado porque seu impacto memorável corporifica a virtude que se quer enaltecer ou o vício que se quer deplorar (no caso de Suetônio, em especial, a virtude convertida em vício pelo exercício imoderado do poder). 
Essa tradição se projetou nos autores cristãos que escreveram numerosas vidas de santos na Idade Média. Embora a virtude cristã se expressasse na imitação de Jesus e na obediência à Igreja, em lugar do sentimento de honra perante a pátria e os antepassados, os autores desses livros buscavam, como na matriz clássica, circunscrever o acontecimento superlativo capaz de tornar indelével o exemplo dos maiores. São testemunhos de milagres realizados e de bênçãos alcançadas, são incidentes em que as crueldades e provações mais inconcebíveis apenas fortalecem a têmpera do cristão no rumo da santidade.

AUTONOMIA Foi mais ou menos a partir do calhamaço de Boswell sobre o dr. Johnson, no final do século 18, que a biografia se desprendeu das motivações cívicas e religiosas na exaltação do biografado para adquirir alguma autonomia literária. A caracterização da personalidade notável e de suas passagens célebres persiste, mas agora o objetivo é atingir a verdade encerrada no ciclo de uma vida, revelar o sentido oculto em que ela se articula com a história ou com o próprio destino.
É um período de biografias gigantescas que se espraiam por vários volumes. Alguns biógrafos acreditam que o sentido de uma vida está inscrito de antemão, por algum processo místico ou desconhecido, na origem de cada existência, como se vivê-la fosse desdobrar um roteiro prévio comparável ao "design inteligente" dos criacionistas. Outros, ao contrário, pensam que toda vida é produto de circunstâncias fortuitas, como se o meio "selecionasse" o personagem para o papel que vai exercer. Combinações das duas doutrinas frutificaram. 
Ao atingir a maturidade como gênero no século 19, quando passa a se ocupar do âmago da vida narrada, a biografia ingressa, porém, num terreno dificultoso e cada vez mais movediço. Uma das mais avassaladoras realizações intelectuais da modernidade foi dissolver a identidade do eu, a própria base onde se assentava o edifício biográfico. Não existe uma pessoa, mas várias, conforme o momento e o ângulo em que é observada. Assim também o sentido de uma vida é sempre múltiplo: será um para a própria pessoa, outro para quem lhe é próximo, um terceiro para o historiador e ainda outro para o historiador rival. 
Há tantas vidas num indivíduo quantos biógrafos que se disponham a escrever sobre ele. Mais do que isso, toda pessoa faz parte de um encadeamento infinito que se perde na imensidão de causas e efeitos do mundo. Onde começa a pessoa e onde termina o mundo? 

COLAPSO DA IDENTIDADE Num livro publicado há pouco no Brasil, "O Pequeno X - Da Biografia à História" [trad. Fernando Scheibe, Autêntica, 232 págs., R$ 47], a pesquisadora francesa Sabina Loriga faz um recenseamento dos efeitos que o colapso da identidade do eu acarretou na historiografia biográfica do século 19. Razoavelmente livre de jargão acadêmico, o trabalho discute a questão tal como aparece nos escritos de autores como Thomas Carlyle, Jacob Burckhardt e Leon Tolstói. A figura do "grande personagem" vai sendo abalada em seus alicerces tanto pelo advento das massas urbanas na cena histórica como pelas inquirições perturbadoras em torno dos abismos da psicologia individual.
Dessa crise emergiu, em 1918, o livro apontado como divisor de águas entre a biografia tradicional e a moderna, "Eminent Victorians", de Lytton Strachey, até hoje sem tradução brasileira.
Para reconstituir o reinado da rainha Vitória, quando se organizou o imperialismo britânico em escala mundial, Strachey seleciona as quatro personalidades eminentes do título, nenhuma delas protagonista da época. Numa proeza de concisão, dedica pouco mais de 50 páginas a cada uma. 
Sua narração é descritiva, factual sem ser enfadonha. Ele não especula, não exagera e não opina -os personagens são como espécimes submetidos à lupa do naturalista. No entanto, sob prosa aparentemente tão inofensiva, uma devastadora dose de crítica social era inoculada no leitor.
Florence Nightingale, a veneranda enfermeira que reformou o sistema hospitalar do Exército britânico na Guerra da Crimeia [1853-56], surge como neurótica obsessiva cujo caráter não seria isento de morbidez. O cardeal Manning, líder de um cisma de prelados anglicanos que retornaram à Igreja Católica, parece concluir que, dentre tantas crenças absurdas e incompatíveis, melhor ficar com a original.
O doutor Arnold é um dos eméritos educadores responsáveis pela introdução dos métodos disciplinares que tornaram infames os internatos ingleses. E o general Gordon, herói das guerras no Sudão, parece o coronel Kurtz de Joseph Conrad, encomendando caixas de conhaque e de água, provavelmente enlouquecido pela febre na selva onde se isolara.
Strachey era irmão do editor da obra de Freud em inglês e amigo íntimo de Virginia Woolf, que integrava como ele o círculo de intelectuais de vanguarda conhecido como Bloomsbury, do qual também fez parte o economista John Maynard Keynes. 
Talvez as extravagâncias atribuídas ao grupo tenham pesado na recepção escandalizada do livro que, ao inaugurar o modernismo na biografia literária, desfechou mais um golpe insidioso na sociedade hierárquica e tradicional que periclitava e viria a se desfazer nas décadas seguintes.

MODERNIDADE A biografia moderna expande o universo de seus personagens, realizando a premonição de Samuel Johnson de que, assim como toda vida merece ser vivida, merece também ser biografada.
Ao mesmo tempo, diferente do tom elegíaco da biografia tradicional, que se atém à camada visível da vida do personagem, ela adota uma disposição investigativa, crítica, revisória. Em face da dificuldade de fixar um "eu" sempre fugaz e do inextricável turbilhão de partículas que faz a história, o biógrafo moderno assume o protagonismo da obra e faz do biografado quase uma invenção artística sua. Desde meados do século passado, porém, o desenvolvimento do cinema e da televisão passou a exercer uma irresistível atração sobre o gênero biográfico. Uma quantidade inédita de leitores, muitas vezes com pouca experiência intelectual, começou a ler biografias vorazmente. A difusão extraordinária da literatura biográfica é consequência, sobretudo, dessa evolução na demografia de leitores. 

CELEBRIDADE Numa era de igualdade de direitos e de padrões massificados, surge como por encanto uma nova hierarquia, fundada na riqueza como a anterior, mas expressa no culto à celebridade. Talvez porque o sentimento de devoção já não seja dirigido à veneração de santos e heróis, que caiu em desuso, ele tenha de se deslocar para essas figuras de fama mundana, mas resplandecente e inatingível como os antigos modelos, geradas pela indústria midiática. Todas essas personagens se dispõem também numa hierarquia, desde a estrela internacional até a celebridade privativa pulverizada pelos "daily me" das redes sociais.
Essa forma sôfrega e impaciente de narcisismo integra o espírito da época, seria inútil resistir a ele. Sempre houve e haverá biografias melhores e piores, de toda forma. Mas as pressões culturais contemporâneas desafiam o projeto modernista em todos os campos, inclusive o biográfico. 
O episódio anedótico, recurso essencial na história do gênero como porta de acesso à revelação biográfica, começa a valer por si mesmo, dadas as solicitações de um público cada vez mais treinado no entretenimento leve. A complexidade de toda vida, campo de exploração do biógrafo, tende a se conformar aos enredos pré-fabricados da psicologia popular. 
Caberá ao bom biógrafo aceitar o espírito da época em que está imerso, sem com isso comprometer a busca solitária da verdade que viu no outro -nessa busca interminável reside, talvez, o sentido último da biografia, como o da própria vida que se resume a ser vivida. 

Na terra do "homem cordial", onde a pessoalidade prevalece sobre normas e fatores gerais, o relato biográfico logo prosperou 

Mais ou menos a partir do final do século 18 a biografia se desprendeu das motivações cívicas e religiosas na exaltação do biografado para adquirir alguma autonomia literária 

Uma das mais avassaladoras realizações intelectuais da modernidade foi dissolver a identidade do eu, a própria base onde se assentava o edifício biográfico 

A figura do "grande personagem" vai sendo abalada tanto pelo advento das massas urbanas como pelas inquirições em torno dos abismos da psicologia individual 

http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrissima/il3010201105.htm


FERREIRA GULLAR


Do acaso à necessidade


  E assim foi que, de repente, percebi que o poema, na verdade, quer nascer sem ter começo. Como assim?


Vivo descobrindo coisas sem importância, mas que me instigam e me fazem refletir. Claro que não estou me referindo ao aroma de jasmim, que me atordoou, certa noite, quando saía do prédio onde mora Cláudia.
Aquilo pertence à categoria dos espantos, donde, no meu caso, nascem os poemas. Mas é raro de acontecer. 
Fora esses espantos, há descobertas menores, menos espantosas, que não geram poemas, mas de qualquer modo provocam certo barato. Nascem como pequenos sinais. 
No início sem importância, mas que deixam um rastro, um vinco, que mal percebo; depois, outra sensação diferente, um curto-circuito mínimo, um choque e já então me dou conta de que alguma coisa está se revelando.
E assim foi que, de repente, percebi que o poema, na verdade, quer nascer sem ter começo. Como assim? Se quer nascer sem ter começo, quer então ser uma espécie de revelação, algo mágico ou místico? Não, místico não, que eu de místico não tenho nada. Revelação pode ser, porque não implica milagre.
Ocorre que essa percepção, de fazer um poema sem começo, surgiu, na verdade e confusamente, de outra descoberta: da quantidade de acaso que entra na realização de toda e qualquer obra de arte.
Essa descoberta já aparece como tema de alguns poemas de meu último livro ("Em Alguma Parte Alguma"), como na série que começa com o poema "Desordem" e prossegue com "Adendo ao Poema Desordem" e "Novo Adendo ao Poema Desordem". 
Nesses poemas, está implícito, além do fator acaso, o fato de que a linguagem verbal não expressa plenamente a realidade, uma vez que, por ser um sistema, sua ordem não é a mesma que a ordem do mundo real, fora dela. 
Daí o poema "Fica o Não Dito por Dito", que abre o livro. Ou seja, como a linguagem só diz o que ela diz, não diz tudo, portanto. Por isso, porque não diz tudo, faço de conta que diz: fica o não dito por dito.
Além de o poema não dizer tudo o que o poeta deseja dizer, não sabe, ao começá-lo, o que vai dizer, porque, para sabê-lo, seria necessário que o poema já estivesse escrito. Assim, tudo o que há, então, é o desejo de dizer algo que o poeta não sabe o que será: está diante de uma página em branco e, portanto, aberto a todas as probabilidades.
Mas, ao escrever a primeira palavra, a probabilidade, que era quase infinita, diminui, porque essa primeira palavra já condicionará a seguinte, tornando-a, por assim dizer, necessária. E assim, palavra a palavra, o poema vai nascendo, num jogo de acaso e necessidade. Num jogo em que, à medida que o poema se constrói, haverá menos acaso, porque cada nova palavra ou verso, que a ele se acrescenta, é determinado pelo que já está escrito e ganhou sentido: o poeta já sabe, agora, o que quer dizer e, por isso, só entra nele o que for necessário.
Escrever, portanto, é vencer o acaso, tornar o fortuito necessário. Isso significa que o que não existia, que era apenas a aspiração de inventar do poeta, torna-se necessário ao poema e à nossa vida.
Qualquer poema que existe poderia não ter sido escrito, mas, uma vez escrito, pode tornar-se necessário por enriquecer-nos. Daí ter eu afirmado, certa vez, que a arte existe porque a vida não basta. E não basta porque tem de ser inventada.
E só então entendi porque, ao inventar de escrever o "Poema Sujo", queria, antes, vomitar toda a vida vivida, criando assim um magma de onde extrairia o poema. Era um modo de começá-lo sem começá-lo: ele já estaria todo ali, no que foi vomitado. Sucedeu que o vômito não saiu e, assim, tive de lançar mão de outro recurso, escrevendo estes versos que não se referem a nada precisamente: "Turvo, turvo / a turva mão do sopro contra o muro / Escuro / menos menos / menos que escuro...". O poema só começa -suponho eu- bem adiante, quando escrevo: "Um bicho que o universo fabrica e vem sonhando desde as entranhas...".
Assim como só então entendi que não queria "começar" o poema, só agora também percebi que ele acabou antes que eu decidisse. De repente, após meses ligadão nele, cessou o impulso e eu não sabia como seguir em frente. 
O final do poema foi inventado por mim, conscientemente, fora do barato em que o compunha, porque teria de dar-lhe um fecho. De modo que é assim: o poema, de fato, não tem começo nem fim.
http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq3010201123.htm

Como lidar com os filhos


Robson Faggiani


O bem estar da criança está intimamente ligado com a habilidade de seus pais. Não é incomum encontrar, na clínica infantil, crianças cujos problemas poderiam ser resolvidos caso os pais tivessem alguma instrução sobre análise do comportamento. Este pequeno guia sobre como lidar com os filhos tem o objetivo de prevenir problemas e fornecer ferramentas aos pais para resolverem possíveis problemas de comportamento dos filhos.
POR QUE NOS COMPORTAMOS?
Para começar, vamos entender por que nos comportamos.
O mais importante a saber é que fazemos o que fazemos porque fomos ensinados. Tudo o que fazemos é aprendido, até mesmo os comportamentos inadequados dos nossos filhos. Se os pais não ajudam o filho na escola, não pedem para eles arrumarem o quarto, não se preocupam se eles saem à noite, com certeza as crianças vão aprender que não precisam estudar, não precisam arrumar o quarto e podem sair para onde quiserem. O fato de que comportamentos são aprendidos é uma boa notícia: significa que podemos ensinar maneiras diferentes de agir. Podemos identificar quais são os comportamentos dos nossos filhos que são inadequados, e criar situações para que eles aprendam melhores formas de se comportar. Para isso, precisamos entender melhor sobre os motivos do comportamento.
Em primeiro lugar, as pessoas se comportam para conseguir algo que querem. Por exemplo: abrimos a geladeira para pegar água, vamos à escola para aprender, convidamos nossos amigos para brincar porque eles nos fazem bem, e assim por diante. Também nos comportamos para evitar algo que é desagradável. Por exemplo: colocamos blusas quando está frio, estudamos para não ir mal à prova, tiramos o sapato se há uma pedra, etc.
Outra propriedade importante do comportamento é que ele é diferente em lugares diferentes. O comportamento na sala de aula difere do comportamento no recreio. As ações diante do chefe diferem das realizada na presença do marido ou da esposa. É importante saber disso porque é comum que nossos filhos se comportem de maneira inadequada com o pai, mas não com a mãe, ou somente na escola e nunca em casa. Se conseguirmos identificar em que situações e com quais pessoas nossos filhos se comportam de forma errada, mais facilmente podemos corrigir esse comportamento.
Vamos usar o exemplo da criança que faz arte na presença do pai e não da mãe. Podemos supor que parte do problema está no fato de que o pai não deve estar estabelecendo regras para a criança, enquanto a mãe consegue impor limites. Agora imaginem uma criança que só estuda na véspera da prova. Muito provavelmente ela faz isso porque os pais não a incentivam a estudar um pouco a cada dia. Se a criança cuidada pela avó faz birra somente quando a mãe, que trabalha o dia todo, chega em casa, isso pode significar que ela está tentando chamar a atenção da mãe com a birra. Esses exemplos mostram a importância de saber em quais situações e com quais pessoas as crianças se comportam inadequadamente. A identificação desses momentos é fundamental para planejar a mudança do comportamento.
A RESPONSABILIDADE DOS PAIS
Os pais, se desejam ajudar os filhos a corrigir comportamentos problemáticos, devem assumir a responsabilidade pelo que está acontecendo. O que os filhos fazem está relacionado com o comportamento dos pais. Portanto, há sempre algo que pode ser feito para o bem das crianças. É fundamental que os pais assumam a responsabilidade porque eles são as pessoas mais importantes para os filhos e é principalmente na convivência familiar que a criança se desenvolve.
Agora que já foi falado sobre os motivos do comportamento, os pais precisam saber que existem quatro formas diferente de lidar com as ações dos filhos.
A primeira e mais recomendável forma de lidar com os comportamentos dos filhos é premiar as ações positivas com elogios, carinhos, presentes, passeios, comidas preferidas, etc. O comportamento positivo premiado tende a ocorrer novamente. Esse prêmio, no entanto, não deve vir após uma ameaça e deve ocorrer da forma mais natural e menos planejada possível. O prêmio também não deve ser apresentado sempre, mas apenas de vez em quando. Crianças que ouvem palavras de incentivo dos pais crescem felizes, saudáveis e autoconfiantes. Os melhores pais são aqueles capazes de dar atenção aos filhos. É preciso tomar cuidado para o prêmio não virar chantagem. Repito: o prêmio (seja carinho, passeio, etc) deve ser o mais natural e menos planejado possível. Pais que premiam sempre e fazem todas as vontades dos filhos podem estar criando crianças mimadas que terão problemas de se adaptar à realidade. Crianças que têm tudo o que querem não desenvolvem autoconfiança e têm dificuldades em lidar com a frustração.
A segunda forma de lidar com os comportamentos dos filhos é não fazer nada. Há pais que, independentemente do que os filhos fazem, seja bom ou ruim, nada fazem: não dão prêmios ou broncas, não fazem carinhos nem deixam de castigo. Pais que não se importam para o que os filhos fazem podem estar criando adultos com dificuldade de aprendizagem, com baixa auto-estima e baixa autoconfiança. Essas crianças podem se tornar adultos apáticos, incapazes até mesmo de conhecer suas próprias preferências.
A terceira forma é motivar o filho com algum tipo de ameaça. Por exemplo, há pais que criam regras como “se você não estudar, vai ficar de castigo” ou “ou você arruma o quarto ou vai apanhar”, e assim por diante. Essa forma de lidar com as ações dos filhos apenas empurram o problema para frente, mas não o resolvem. Filhos que crescem recebendo ameaças não são capazes de entender o porquê devem se comportar de maneira positiva. Serão adultos desconfiados e com medo de errarem.
A quarta forma é brigar ou bater nos filhos sempre que eles fazem algo errado. Apesar de parecer a mais funcional das formas, é a menos recomendada. Filhos que apanham ou são xingados pelos pais se tornam adultos violentos, sem nenhum amor próprio e sem autoconfiança. Alguns estudos correlacionam a violência na infância com criminalidade. Por isso, bater ou xingar é a pior maneira de lidar com os filhos. Sempre que possível, os pais devem evitar punir suas crianças. Como dito anteriormente, é muito melhor ensinar os filhos por meio da premiação.
DO QUE AS CRIANÇAS GOSTAM
 Agora que os pais sabem a melhor forma de lidar com os comportamentos dos filhos, é válido falar sobre o que as crianças gostam. Se os pais souberem o que é importante para seus filhos, é mais fácil que cuidem deles com atenção e carinho.
Segue uma lista de coisas que as crianças gostam:
1. Brincar: a brincadeira é fundamental para as crianças aprenderem a se relacionar socialmente e conhecer seus limites. Por meio das brincadeiras, elas desenvolvem sua inteligência, imaginação e passam a aprender a diferenciar suas preferências das de outras pessoas.
2. Receber carinho e atenção: tanto meninas quanto meninos gostam de receber carinho e atenção dos pais. Carinho faz com que as crianças se sintam felizes, possibilitando que cresçam com saúde, auto-estima e autoconfiança.
3. Ser ouvido: permita que seus filhos contem histórias, ainda que fantasiosas. Ser ouvido faz com que a criança se sinta valorizada.
4. Poder decidir: meninos e meninas adoram tomar decisões. Uma vez por semana, deixe seu filho escolher o jantar. Permita que ele escolha qual canal assistir, qual refeição comer, etc. Isso é ótimo para autoconfiança dele e ajuda no crescimento saudável.
5. Aprender coisas novas: crianças são curiosas por natureza. Elas gostam de explorar o ambiente, fazer perguntas, etc. Ajudem-nas nisso. Crianças incentivadas a aprender se tornam mais inteligentes e capazes. Portanto, respondam as dúvidas dos seus filhos.
6. Não ser comparado: não é correto comparar um dos seus filhos com seus irmãos ou com outras crianças. Cada pessoa é única e deve ser tratada assim.
7. Ser valorizado: meninos meninas adoram quando os pais prestam atenção no que fazem e elogiam seu trabalho. Elogiar e prestar atenção é uma boa maneira de criar auto-estima e autoconfiança.
COMO VOCÊ DEVE TRATAR SEU FILHO
A melhor forma de evitar dificuldades é prevenindo sua ocorrência. Um lar pacífico evita crianças com problemas de comportamento. Hoje em dia, a pressão do trabalho é grande. Os pais chegam em casa estressados e cansados e não têm vontade, ou tempo, de estar com os filhos. É compreensível. No entanto, isso não pode servir como desculpa para uma má educação. Se os pais se esforçarem e criarem um ambiente agradável em casa, vão chegar do trabalho com mais energia, pois vão encontrar paz e o carinhos dos filhos. Se os pais não dão atenção ao lar, o caos se forma e chegar do trabalho pode se tornar desagradável. Portanto, investir na paz em casa é benéfico tanto para os pais quanto para os filhos.
Seguem algumas dicas para um ambiente saudável e para lidar adequadamente com as crianças:
1. Seja honesto e direto com seus filhos. Às vezes as crianças fazem perguntas desconcertantes, ou querem saber o motivo de certas proibições. O melhor caminho a tomar é explicar para os filhos as razões de tudo. Se uma criança entender por que deve olhar para os dois lados antes de atravessar a rua, é muito mais provável que faça isso com cuidado do que se simplesmente ouvir a regra e levar bronca no caso de não segui-la.
2. Tenha certeza de que ensinou o comportamento correto. Muitas vezes exigimos que nossos filhos façam as coisas do nosso jeito, mas não ensinamos exatamente como é esse jeito. Então, antes de brigar com seu filho, tenha certeza de que você deixou claro para ele qual é a maneira correta de se comportar.
3. Todas as pessoas são diferentes. Lembre-se sempre que cada pessoa é única e tem gostos e preferências particulares. Antes de dar uma ordem, de brigar com seu filho, de dizer que ele não faz nada direito, pense nas preferências dele. Não é justo exigir que todas as pessoas sejam iguais a você. É saudável respeitar as particularidades das pessoas.
4. Seja firme, mas não punitivo. Já foi falado sobre o problema de ser punitivo, mas não dos benefícios de ser firme. Ter firmeza significa não voltar atrás nas suas decisões. Uma proibição deve se manter uma proibição até que a situação mude de alguma forma. Pais que voltam atrás em suas decisões podem gerar filhos sem limites. Por exemplo: é muito comum que os pais deixem o filho de castigo, mas o tirem com antecedência por ficarem com dó da criança. Ser firme, nesse caso, consiste em não tirar a criança do castigo até que a determinação inicial tenha sido cumprida.
5. Passe um tempo com seu filho. Após chegar do trabalho, ou nos fins de semana, passe um tempo com seu filho. O ideal é conversar um pouco e brincar com ele. Se não for possível, pelo menos jantem no mesmo horário e assistam ao programa favorito da criança. Filhos que não passam tempo com os pais podem desenvolver problemas em relacionamentos e dificuldade em confiar em outras pessoas.
6. Interesse-se pelas tarefas da escola. É comum que os pais pensem que o filho tem a obrigação de estudar. Isso é só parcialmente correto. Os filhos devem, sim, freqüentar a escola, mas ao invés de serem forçados, devem ser incentivados a isso. Pais que se interessam pelo que aconteceu na escola, que vistam as tarefas escolares, que ajudam os filhos a estudarem para as provas e que participam dos eventos da escola, estão contribuindo não só para a formação imediata do filho, mas para seu futuro de interesse pelos estudos. Não é preciso saber sobre o que os filhos estão estudando. Mostrar interesse basta para incentivar a criança.
7. Sejam coerentes. Há pais que dividem os papéis. Um deles é o liberal e o outro, o chato. Isso deve ser evitado. O ideal é que os pais entrem em acordo sobre os limites dos filhos e sobre possíveis punições ou prêmios. Pais discordantes podem deixar o filho confuso, além do fato de que as crianças podem passar a preferir um do pais ao outro, o que não é desejável nem saudável.
8. Imponha limites. Crianças precisam saber até onde podem ir. Tratar bem o filho não é sinônimo de deixá-los fazer o que bem entenderem. Os limites são importantes, pois protegem os filhos de fazerem algo perigoso ou que pode ser socialmente considerado ruim. Por meio dos limites, as crianças aprendem que há regras no mundo e que é preciso obedecê-las como todos fazem. Os limites devem ser pensados para não serem muitos nem poucos. Crianças com muitos limites crescem com medo de errarem e arriscarem. Crianças com poucos limites podem se tornar sem valores morais.
9. Reconheça seus erros. Ninguém é infalível. Se você cometeu algum erro com seu filho, não tenha medo de admitir. Além de fazer bem para você e para a criança, isso vai ensiná-la a se responsabilizar por seus atos.
10. Converse também sobre assuntos delicados. Muitas crianças têm curiosidade sobre sexo, morte ou outros assuntos do tipo. O ideal é não esconder delas o que são essas coisas, e falar sobre esses temas de uma forma apropriada para cada idade. Uma criança de 7 anos não precisa saber tudo sobre sexo, mas é bom que saiba o que é isso. Já uma criança de 16 anos precisa saber tudo sobre sua sexualidade. Apesar de esses assuntos serem tabus, eles precisam ser tratados. A honestidade e clareza com a criança pode prevenir problemas futuros.
11. Seja um modelo. Filhos imitam os pais. É injusto exigir do filho um comportamento que os pais não demonstram.
12. Procure ajuda. Caso essas dicas não ajudem, procurem ajuda de um profissional. Problemas graves, como abuso de drogas, podem requerer auxílio de uma pessoa especializada no problema. Não há vergonha em pedir ajuda. Pelo contrário, é nobre querer ajudar o filho.

Disponível em: <www.psicologiaeciencia.com.br/como-lidar-com-os-filhos/>





Um jornal está fazendo escola

GILBERTO DIMENSTEIN






Nunca se teve tanto acesso a notícias e tanta insegurança sobre as regras para sobreviver




Até pouquíssimo tempo atrás ninguém diria que um jornal seria uma escola para se estudar sobre assuntos tão variados como música erudita, vinhos da Califórnia, câncer, diabetes, funcionamento do cérebro, criação de blog, energia nuclear, história da arquitetura asiática, arte africana, comércio eletrônico ou urbanismo.
Esses são apenas alguns dos cursos à distância oferecidos pelo "The New York Times", muitos deles em parceria com universidades, que atraem alunos de várias partes do mundo. Além dos professores universitários, as aulas são ministradas pelos jornalistas e colaboradores do jornal. "É um segmento que vamos ampliar cada vez mais, as matrículas não param de crescer", afirma Felice Nudelman, responsável pelos projetos educacionais daquele grupo editorial.
Minha suspeita é de que estamos diante de uma nova fronteira do conhecimento: a fusão das linguagens da educação com comunicação.

Descrição: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/images/ep.gif
É sabido como empresas jornalísticas têm realizado pesados investimentos, como no Brasil, para ganhar o mercado de livros didáticos e sistemas de ensino. No caso do "The New York Times" há um diferença: com a ajuda das universidades, eles estão fazendo da redação uma espécie de sala de aula, onde jornalistas viram professores e leitores, alunos. Na quinta-feira passada, aliás, eles reuniram 400 educadores de todos os continentes para discutir como as novas tecnologias estão moldando o jeito que se aprende e se ensina.
A novidade reflete a ansiedade generalizada nos meios de comunicação diante das incertezas geradas pelas novas tecnologias, estimulando os mais variados tipos de apostas para agarrar o leitor.

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Um dos melhores resumos que ouvi sobre essa ansiedade veio do jor-nalista Joshua Benton, responsável por um observatório em Harvard focado nos impactos das novas tecnologias na mídia. "Vivemos um momento extraordinário para o jornalismo. E terrível para os jornalistas". Nunca se teve tanto acesso a notícias. Mas também nunca se teve tanta insegurança sobre as regras para sobreviver.
Certamente não ajudou a reduzir o clima de ansiedade a recente descoberta na Universidade Northwestern, nos Estados Unidos: um software capaz de redigir notícias sem ajuda de humanos. O programa foi batizado com o sugestivo nome de Monkey (Macaco).
Nessa corrida, o "The New York Times" contratou cientistas e montou um laboratório para testar novas maneiras de disseminar informação. Dali surgiram um espelho e uma mesa que transmitem as notícias enquanto escovamos os dentes ou tomamos o café da manhã.



Na quinta-feira passada, o Face-book anunciou uma série de ino-vações para facilitar o compar-tilhamento de filmes, músicas e notícias. Entre outros acertos, fechou uma parceira com o "The Washington Post" e Yahoo!. A ideia, em síntese, é fazer de seus amigos curadores de conteúdos. Não por outro motivo, a Google está investindo pesado em redes sociais, temendo que seu mecanismo de busca impessoal perca força.
Não se sabe qual a regra do jogo que vai vencer. Mas o que se sabe é que a demanda por conhecimento não vai parar de crescer.
Como estamos na era da aprendizagem permanente, não se pode parar mais de estudar se não quiser ficar desatualizado. Vive-se mais e com mais saúde. As livrarias podem desaparecer, como estão desaparecendo em várias cidades. Mas a necessidade de livros não vai diminuir. Não é à toa que muitas livrarias imaginam que, para sobreviverem, terão de se transformar em centros culturais e educativos.



Em meio à abundância vertiginosa de dados, cresce a demanda de seleção sobre o que é relevante. Aí reside a fronteira entre a informação e o conhecimento.
Nenhuma forma de seleção consegue ir tão a fundo, relacionando fatos e conceitos, como o processo educativo numa sala de aula real ou virtual. Informação pode-se pegar em qualquer lugar: se quiser ver as aulas do MIT, sem pagar nada, basta apertar o botão do computador. Transformar isso em aprendizagem é outra coisa.
Certamente, nesse jogo de busca de seleção não vai faltar espaço para quem ajuda a contextualizar uma informação, gerando conhecimento.
Por isso a minha suspeita de que a escola do "The New York Times" é uma aposta consistente numa nova linguagem, misturando Redação com sala de aula.






Leitores do sisal*


Por Galeno Amorim


Moisés, Laudércio, Antônio Jorge. São nomes de crianças comuns. Dessas que se encontram por toda parte, país afora, em pequenas vilas do interior ou nas periferias das grandes cidades. Por nomes assim é que atendem esses meninos e meninas que, embora na pobreza, vivem lá a sua vida, em casas simples, porém numa família de bem e...
A frase acima bem que poderia ser completada assim: "...e, como qualquer outra criança da idade, brincam numa parte do dia e na outra vão à escola pública do lugar". Mas, não. No caso desses e de um outro bom tanto deles, de Norte a Sul, não é assim. Todos os três meninos, e um punhado de outros daquela zona, foram, desde muito cedo, para a labuta nas plantações de sisal. Brincar e ler, se acostumaram a ouvir, era coisa de filho da gente rica da cidade.
Por isso, Antônio Jorge sempre foi uma criança triste. Brincar ou estudar nunca fez parte da sua infância. Nem mesmo do seu vocabulário. Antes de o sol nascer, ele já estava de pé. Pronto para a luta de todo dia. Passava horas, ao lado do pai, ceifando a palha. Os espinhos, que vez ou outra deixam cortes profundos na pele, eram, podia se dizer, o que mais se aproximava de um brinquedo.


De fato, era aquela uma vida dura a que levavam nos arredores de Retirolândia, no sertão da Bahia. Não havia perspectiva melhor para gente como eles, que acabam sempre se resignando e acham algo muito natural trocar o lápis e a caneta pela foice.
O jeito era viver naquela escuridão danada.
Mas um dia os homens do governo apareceram e avisaram: criança não podia mais trabalhar. Foi um deus nos acuda! Como, afinal, aquela meninada embrutecida poderia aprender a ser alguém na vida sem o santo remédio do trabalho?!, se horrorizavam.
Para alívio da parentela, cada qual passou a receber uma bolsa do governo, como que para compensar a trocar do trabalho infantil nas lavouras de sisal pelos bancos escolares. Mas não era fácil: após uma infância inteira longe dos cadernos, ter que ir à escola a essa altura do campeonato?!
Foi aí que alguém deu a ideia: por que não liam para aqueles moleques crescidos e endurecidos pela vida as histórias que iam dentro dos livros? Com o mesmo sisal que, até então, roubara parte preciosa daquela infância perdida, fizeram baús de bom tamanho. Dentro, encheram de livros.
- Dentro desses baús acabei por descobrir um mundo novo! - diz, com incontida emoção, Antônio Jorge Santiago.
Em seus 15 anos, todos eles vividos no meio do mato, jamais imaginara que pudesse existir tanta coisa diferente como aquelas que, agora, calmamente sorvia das páginas de cada livro que lhe caía às mãos. Laudércio Carneiro, para quem certo não devia ser ter que trabalhar em vez de ir à escola, sentia o mesmo.
- Os livros me tornaram gente - garante, com um orgulho indisfarçável.
Já Moisés, que os amigos insistem em chamar de Moca, era um menino muito tímido. Envergonhado demais da conta. Não abria a boca pra nada. Tanto que no dia em que a professora, uma moça chamada Ana Paula, o chamou para ler na frente de todo mundo, ele simplesmente foi tomado de pavor. Suava frio. Só foi mesmo porque, na hora H, ela, percebendo seu nervosismo, deu um leve empurrão nas suas costas.


Ele foi. Leu sem gaguejar. E gostou! Desde então, tornou-se presidente do grêmio da escola e líder da turma.


Parece milagre, mas o causo é que aqueles livros vêm, pouco a pouco, mudando os hábitos e a própria vida do lugar. O Movimento de Organização Comunitária faz uma conta: já deve ter espalhado uns 700 Baús da Leitura pelas cidades daquela zona do sisal. Adilson Baptista, um dos líderes, observou que a literatura tem aproximando as pessoas de lá com outras que elas nunca viram mais gorda e, provavelmente, jamais conhecerão nesta vida.
- A pessoa que não lê vive isolada do mundo - ele tem apregoado a quem tem ouvidos de ouvir.
Os livros, aposta ele, podem, justamente, ser esse elo entre as pessoas.


Disponível em:< Revista Brasil Que Lê. Edição 217 - De 07 a 13/10/2011| www.observatoriodolivro.org.br


** Sisal - Planta da família das amarilidáceas, de que se extrai fibra têxtil.


CONTARDO CALLIGARIS


O sentido faz falta?

A gente procura um sentido para a vida somente quando o cotidiano perde sua graça e seu encanto



É uma queixa frequente: o mundo e a vida fazem pouco sentido -muito menos sentido do que antigamente, completam os saudosistas. Nas famílias, às vezes, essa queixa produz uma espécie de pingue-pongue. Os pais acham que os filhos adolescentes vivem por inércia, sem rumo e projeto: “Eles não estão a fim de nada que preste, não têm uma causa, uma visão de futuro”.
Os filhos, confrontados com essa preocupação dos pais, declaram que, se precisassem mesmo de um sentido para viver, certamente não é com os pais que eles o aprenderiam: “Mas qual sentido gostariam que eu escolhesse para minha vida, se a vida deles não tem nenhum?”. Nesse diálogo, o sentido parece ser sempre o que falta na vida dos outros que criticamos.
Também existem indivíduos (adolescentes e adultos) que se queixam da falta de sentido em sua própria vida: “Viver para quê? Todo o mundo vai morrer de qualquer jeito; que sentido tem?”.
Geralmente, ao procurar responder a essas constatações desconsoladas, amigos, parentes e terapeutas agem como os pais que mencionei antes: querem injetar uma causa, uma visão de futuro na vida de quem lhes parece ter perdido o rumo “necessário” para viver.
Agora, eu não estou convencido de que, para viver, seja necessário que a vida tenha um sentido. Quando alguém se queixa de que sua vida é sem sentido, não tento interessá-lo em grandes razões para viver. Prefiro perguntar (para ele e para mim mesmo) de onde surge tamanha necessidade de um sentido. É curioso que, para alguns, a existência precise de uma justificação, de uma razão, de uma causa, de uma visão de futuro.
Em regra, essa necessidade de justificar a vida se impõe quando a própria vida não se basta mais. Ou seja, é quando os gestos cotidianos perdem sua graça que surge a obrigação de fundamentar a vida por outra coisa do que ela mesma.
Nota clínica: a depressão não é o mal de quem teria perdido (ou nunca achado) uma grande razão para viver. Depressão é ter perdido (ou nunca encontrado) o encanto do cotidiano. Por consequência, tentar “curar” a depressão de um adolescente propondo-lhe militância política ou fé religiosa é nocivo: se a gente conseguir capturá-lo num grande projeto, esse mesmo projeto o afastará ainda mais da trivialidade do dia a dia, cujo encanto ele perdeu.
Resumindo, quando alguém se queixa de que a vida não tem sentido, o problema não é ajudá-lo a encontrar o tal sentido da vida, mas ajudá-lo a descobrir que a vida se justifica por si só, que ela pode ser seu próprio sentido.
A cultura moderna poderia ser dividida em dois grandes blocos (que não coincidem com as tradicionais divisões de esquerda vs. direita etc.): os que pensam que o sentido da vida não está na própria experiência de viver (mas na espera de um além, num projeto histórico etc.), e os que pensam que a experiência de viver, por mais transitória que seja, é todo o sentido do qual precisamos (nota: a psicanálise, inesperadamente, está nesse segundo grupo, por constatar que a gente sofre mais frequente e gravemente pelo excesso do que pela falta de um sentido).
Alguém dirá que, com o declínio das utopias políticas e algum avanço (talvez) do pensamento laico, o sentido da vida está em baixa. Em suma, eu estaria chutando um cachorro morto.
Não concordo: talvez a própria crise das utopias e de algumas religiões instituídas esteja reavivando uma espiritualidade que tenta sacralizar o mundo, prometendo, no mínimo, sentidos ocultos.
O esoterismo “new age” nos garante que a vida tem um sentido misterioso, que a gente nem precisa saber qual é. Melhor assim, não é? Acabo de ler um breve (e delicioso) ensaio do filósofo italiano Giorgio Agamben, “La Ragazza Indicibile” (a moça indizível, Electa, 2010). Agambem (retomando um ensaio de Jung e Kerényi, de 1941, sobre Koré, a moça sagrada -Perséfone na mitologia clássica) mostra que os mistérios de Eleusis (que são os grandes ascendentes do esoterismo ocidental) de fato não revelavam nenhum grande sentido escondido das coisas e da vida -a não ser talvez o sentido de uma risada diante do pouco sentido do mundo.
Ele conclui com a ideia de que podemos e talvez devamos “viver a vida como uma iniciação. Mas uma iniciação ao quê? Não a uma doutrina, mas à própria vida e à sua ausência de mistério”.

Disponível em:  <http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq0610201116.htm>



Literatura e Mercado
Por: Selma Pupim


Partindo do princípio que bons leitores são pessoas de bom nível sócio-cultural e se interessam por textos essencialmente literários, os leitores de romance pressupõem-se sujeitos com interesse, acima de tudo, em literatura. Visto por esse ângulo, alguém que segue esse gênero é, com certeza, atraído por literatura.
Essa amostragem de leitores denominados pessoas inteligentes, cultas, de bom nível sócio-cultural e com um fortíssimo interesse em leitura podem, em boa parte, não saber ler literatura.
Parafraseando Dieter Wellershoff, em seu texto Literatura, Mercado e Indústria Cultural (1970), os termos literatura e mercado lado a lado apontam uma relação incerta. Nesse sentido, considerando-se que uma obra literária é também uma mercadoria que o escritor vende ao editor e este ao livreiro, que por sua vez repassa ao público, a literatura, então, dilui-se em mera mercadoria. Para o estudioso, isso ocorre pelo fato de, alguns autores não possuírem qualquer ambição, critérios ou perspectivas exceto a venda.
 No entanto, Umberto Eco ressalta em Apocalípticos e integrados (1970) que, embora a fabricação de livros tenha se tornado um acontecimento industrial, porque se submete às regras da produção e do consumo, como a produção de encomenda, o mais importante é que:


[...] a indústria editorial distingue-se da dos dentifrícios pelo seguinte: nela se acham inseridos homens de cultura, para os quais o fim primário (nos melhores casos) não é a produção de um livro para vender, mas sim a produção de valores, para cuja difusão o livro surge como o instrumento mais cômodo. Isso significa que, segundo uma distribuição percentual que não saberei precisar, ao lado de “produtores de objetos de consumo cultural”, agem “produtores de cultura” que aceitam o sistema da indústria do livro para fins que dele exorbitam. Por mais pessimista que se queira ser, o aparecimento de edições críticas ou de coleções populares testemunha uma vitória da comunidade cultural sobre o instrumento industrial com a qual ela felizmente se comprometeu. (ECO, 1970, p. 50)


Diante dessas considerações, procuraremos a seguir discorrer o posicionamento de alguns críticos e estudiosos sobre literatura e mercado, ponderar acerca da indústria cultural, da dicotomia entre cultura popular e erudita, assim como, refletir acerca da construção do conceito de cultura letrada e não letrada, quanto ao seu potencial reprodutor e mantenedor da sociedade, como também quanto ao seu potencial politizador e emancipatório.
Para isso, valemo-nos dos textos de Walter Benjamin, Adorno e Horkheimer, Sílvia Helena Simões Borelli, Umberto Eco, José Machado Paes, dentre outros. Destacamos, entre esses, o texto de Walter Benjamin, A obra de arte na época de suas técnicas de reprodução (1983), que contesta as visões preconceituosas e estereotipadas, muito difundidas no meio acadêmico, segundo as quais Adorno é pessimista e Benjamin é otimista em relação à indústria cultural.
Nesse mesmo enfoque, Umberto Eco, em seus escritos Sobre os espelhos e outros ensaios e Seis passeios pelos bosques da ficção, publicados respectivamente em 1985 e 1994, adota a perspectiva de que “[...] existe espaço para a reflexão positiva e bem humorada sobre inúmeros produtos serializados, resultantes da produção cultural industrializada”. (apud BORELLI, 1996, p. 33)
Após a criação da indústria cultural, nos anos 40, muito negativismo surgiu na atual sociedade. Juntamente com Horkheimer, Adorno elaborou o conceito de “indústria cultural”, identificando a exploração comercial e a vulgarização da cultura, como também a ideologia da dominação da natureza pela técnica.
 Adorno, um dos mais importantes filósofos da Escola de Frankfurt, com uma visão um tanto pessimista da situação, reforça a idéia de exploração comercial e vulgarização da cultura; para o autor, a produção em massa significa a transformação da cultura em mercadoria. Dessa forma, a Indústria Cultural fixa, de maneira exemplar, a destruição da cultura e sua transformação num potencial reprodutor, visto ser sua principal atividade econômica a produção da cultura com fins lucrativos.
Segundo o autor: “A violência da sociedade industrial opera nos homens de uma vez por todas. Os produtos da indústria cultural podem estar certos de serem jovialmente consumidos, mesmo em estado de distração”. (ADORNO, 2000, p 175).
Para alguns estudiosos, sem dúvida, a indústria cultural manipula a vida do cidadão comum. A atividade mental do espectador é vetada, assim como a sua capacidade interpretativa e de reação. Ainda, a técnica da indústria cultural com sua produção numerosa faz com que os produtos sejam estandardizados.
Como afirma Adorno, a indústria cultural realizou o homem como um ser genérico, ou seja, um exemplar, nesse sentido, as próprias obras de arte seguiram o mesmo destino e se transformaram também em mercadorias. Por outro lado, as obras de arte são oportunamente adaptadas pela indústria e com os preços reduzidos torna-se acessível a todos.
Walter Benjamim, por sua vez, também um frankfurtiano, adota uma posição integralista, em que o conteúdo exposto pela mídia pode e é bem aproveitado.  Benjamin, opondo-se às referências feitas por Adorno e Horkheimer distancia-se inúmeras vezes das concepções destes e conduz à idéia para o otimismo, vislumbrando na massificação da cultura um potencial emancipatório.
Benjamin, no início de seu texto, A obra de arte na época de suas técnicas de reprodução (1983), refere-se à análise prognóstica de Marx, que vislumbra a subversão do sistema capitalista pela classe proletária. Propondo-se estudar as esferas da superestrutura, sobretudo as esferas culturais, Benjamin ressalta que, apesar das esferas superestruturais evoluírem bem mais lentamente, já na década de 1930, percebia em seu desenvolvimento as possibilidades de rupturas com as formas culturais tradicionais anteriores.   
  Nesse sentido, o autor rompe com as noções tradicionais de arte, que enaltecem valores como poder criativo, genialidade e ao citar Paul Valéry,  revela que a reprodução das obras de arte existe há muito tempo. O que mudou foram os meios, as técnicas, que modificaram inclusive a própria noção do que é arte e a relação dos indivíduos com a mesma. Para o estudioso: “Reproduzem-se cada vez mais obras de arte, que foram feitas justamente para serem reproduzidas”. (Benjamin, 1983, p.11)
Benjamin, diante de suas reflexões, assinala o fim da arte destinada a uma elite e aponta que, com as novas técnicas de reprodução, a base material continua sendo capitalista, porém, a arte passa a se destinar às massas. Para o autor, a obra de arte, através da diversão, penetra nas massas, realizando tanto a função de diversão quanto de crítica social.
Por fim, Benjamin observava os aspectos negativos e positivos da obra de arte com suas novas técnicas de reprodução. Diante disso, com o declínio da aura e com a possibilidade de politização da arte, surge um caminho para a emancipação da sociedade. Já, Adorno destacou o caráter ideológico e reprodutor do sistema cultural, que transforma as atividades de lazer em um prolongamento do trabalho, por isso, os homens recorrem a essas atividades como fuga.
Para o autor, Edgar Morin, a indústria cultural organiza-se de forma que o poder cultural esteja de acordo com as exigências do consumo cultural. A partir da estrutura do imaginário, a indústria cultural procura demonstrar a estandardização dos grandes temas romanescos tornando os arquétipos em estereótipos. Diz Morin, que se fabricam os romances sentimentais em série, a partir de modelos tornados conscientes e racionalizados, embora sob a condição de tais produtos saídos da série ser individualizados.
A busca do difícil equilíbrio entre agradar o público, obter sucesso comercial e preservar a dimensão de uma obra leva os autores contemporâneos a trabalhar com uma multiplicidade de temas e estilos que permitem diferentes níveis de leitura, atendendo às exigências de um público variado, numa tentativa incessante que mantém vivo o interesse pela leitura.  
As culturas de massas observadas tanto por Adorno quanto por Morin, são produtos de uma indústria cultural. E esses produtos são, na concepção dos autores, reformulados, pois na atual indústria, não existe mais a possibilidade de criação de algo novo, uma vez que tudo é somente reformulado e apresentado a sociedade com uma nova roupagem.
Como afirma Sílvia Helena Simões Borelli, vivemos diante de um impasse em torno do papel da cultura e da literatura nas sociedades modernas, a produção atual circula sob a marca dos diferentes gêneros e subgêneros literários. Borelli considera que:


Assumir a presença dos prefixos para, sub, infra, contra ou a (literário) e as adjetivações trivial, entretenimento, popular e de massa implica assimilar, como referência, uma concepção de campo literário dividido e polarizado: de um lado, a verdadeira literatura, com suas normas, hierarquias, modelos constituídos; em oposição a ela, um conjunto outro de escrituras que foge ao padrão reconhecido e é, por vezes, ignorado ou então classificado como não-literário, subliterário, infraliterário, contraliterário ou paraliterário. (BORELLI, 1996, p. 23) (grifos do autor)


Na perspectiva de Umberto Eco, o autor deixa claro possuir um evidente fascínio pelos produtos culturais, as mensagens à disposição da massa  são acessíveis, também, ao segmento culto da sociedade. Na concepção do autor, as preferências marcam diferentes segmentos culturais, dessa maneira:


O homem de cultura que em determinadas horas ouve Bach e em outros momentos sente-se propenso a ligar o rádio para ritmar sua atividade através de uma “música de uso” [...] nessa atividade, aceita “acanalhar-se”, [...] aceita descer de nível, diverte-se bancando o “normal”, igual à massa que, de coração, despreza, mas da qual sofre o fascínio, o apelo primordial. (apud BORELLI, 1996, p. 32) (grifos do autor)


Assim sendo, vimos o campo literário dividido entre cultura letrada e não letrada; O fato é que a literatura não tem monopólio da leitura. As pessoas lêem por várias razões e hoje muito mais do que jamais leram na história do mundo. Se, por um lado, temos o leitor em busca de leitura, por outro lado, o autor tende a se popularizar e, num mundo pós-moderno, o ritmo acelerado da circulação de imagens, certamente a presença de obras editadas inúmeras vezes, contribuem para o reconhecimento do escritor e a sua subsistência.
Por outro lado, a arte tenta marcar o seu lugar dobrando-se sobre o discurso da cultura de massa, a linguagem dessa cultura é trabalhada como um sistema para o qual a arte se volta, com o propósito de esvaziar o seu sentido ideológico, transformando-o num mero estilo, numa forma vazia de que a arte se apodera.
O Grande Divisor, expressão utilizada por Andreas Huyssen e que insiste na distinção entre alta arte e cultura de massa predominou apenas durante o final do século XIX, em seguida, deixou de apresentar consistência devido ao desenvolvimento das artes de forma geral. A angústia da contaminação, que para Huyssen caracteriza a reação do modernismo a uma cultura de massa crescentemente consumista e opressiva, estimulou sempre critérios que impulsionaram as diferenças entre os produtos da cultura de massa e os da chamada alta cultura. Um desses critérios, utilizado pelos pensadores da arte e da comunicação de massa, diz respeito à maneira como cada um dos dois campos se relaciona com os gêneros de discurso preestabelecidos.
As culturas de massas são introduzidas na sociedade com novos apelos para o consumo e cada vez mais a máquina da Indústria Cultural, ao preferir a eficácia dos seus produtos, determina o consumo dos mesmos. De forma semelhante, cada romancista e cada romance cria a sua própria forma ao romper com convenções e tabus, propiciando uma literatura para crianças e adolescentes num mesmo pé de igualdade de uma leitura para adultos.
Dessa maneira, os conteúdos veiculados pela indústria cultural, são objetos de análise de muitos estudiosos, que dizem que os produtos dessa indústria serão bons ou maus, alienantes ou reveladores, conforme a mensagem por eles vinculada. Com efeito, a mensagem subjacente pode ser mais importante do que a que se vê, já que aquela escapa ao controle da consciência e não será impedida ao consumo, pelas resistências psicológicas e penetra provavelmente no inconsciente dos espectadores.
Nesse momento, vale destacar a importância do fascinante mundo editorial para a manutenção e a sobrevivência da Indústria Cultural. Este é um outro mundo que nos é mostrado a cada obra lida, onde os produtos são meros objetos.
De acordo com a professora Vera Teixeira de Aguiar, em palestra proferida a alunos da Pós-Graduação do curso Literatura e Mercado - Unesp/Assis, o livro é um produto e os leitores, os consumidores. Com isso, a função da publicidade é a de vender o produto, aumentar o consumo e abrir mercado. Para Aguiar, as artes têm interesses distintos, todavia, para chegar ao público, toda mercadoria passa pelo mercado e não é diferente com a literatura, o editor tem os olhos voltados para o comércio, Conforme a pesquisadora, o professor da área das Letras é um representante comercial das editoras e acaba por transformar a literatura em um produto consumível. Valendo-se do processo de mercadoria vendável, para o mercado editorial, o artifício é o mesmo em relação à questão do livro e o escritor para se manter, se enquadra no mundo contemporâneo e adentra na sociedade de mercado.
Na maioria das vezes, no mercado editorial, o livro é construído segundo um formulário feito para produtos em série, o escritor faz uma espécie de análise de mercado e se adapta a ele. Nesse sentido, o autor trabalha com fórmulas, mudam-se os nomes, os lugares, porém as histórias se repetem. Contudo, ressalta Umberto Eco, em o Pós-escrito a O nome da rosa (1985):


Mas quando o escritor planeja o novo, e projeta um leitor diferente, não quer ser um analista de mercado que faz a lista dos pedidos expressos, mas sim um filósofo que intui as intrigas do Zeitgeist. Quer revelar o leitor a si próprio. (ECO, 1985, p. 42)


No entanto, a recepção e a apropriação dos produtos da mídia são processos sociais complexos em que os indivíduos ao interagir com outros adotam atitudes diversas e as usam diferentemente no curso de suas vidas. A Indústria Cultural no Brasil apresenta-se marcada pelos evidentes traços do capitalismo em geral e está bastante voltada para temas, assuntos e culturas estrangeiras, particularmente a norte-americana, os programas importados, considerados enlatados, as notícias sobre o exterior veiculadas com grande destaque, os lançamentos dos best-sellers, provocando polêmicas diversas junto à crítica.
Como afirma o estudioso João Luís C. T. Ceccantini, em seu texto Leitores de Harry Potter: do negócio à negociação da leitura (2005), ao se posicionar diante de pontos de vista radicalmente divergentes, quanto ao fenômeno Harry Potter, e a pedra filosofal (1997):


Para os mediadores empenhados em formar leitores-professores, pais, bibliotecários, animadores culturais, contadores de histórias – esse largo descompasso pode gerar profundo desconforto, na medida em que se imaginem utilizando um livro certamente despertará grande prazer em boa parte de seus potenciais leitores, mas que é considerado por alguns especialistas de peso como de má qualidade. O que fazer? [...] Evitar a literatura contemporânea e trabalhar apenas com os “clássicos”, ainda que sob o risco de menor adesão por parte dos jovens leitores em formação? Como despertar o gosto pela leitura sem perder de vista também a depuração do senso crítico e estético? (CECCANTINI, 2005, p. 43)


Para o pesquisador, mesmo sem o aval dos puristas, “[...] uma obra poder ser considerada muito boa para atender às necessidades de formação de leitores num dado contexto e ser julgada banal do ponto de vista da história da literatura (infanto-juvenil)”. (CECCANTINI, 2005, p. 48) Essas questões afloradas pela crítica tratam, contudo, da formação de jovens leitores e, fundamentando-se em Eco, comenta o fato do pensador italiano alertar para a necessidade de buscar formas mais dinâmicas de se compreender o processo cultural da atualidade.
Ceccantini demonstra bastante admiração e respeito pelo trabalho do pensador Umberto Eco, que não apenas discute cada vez mais os insignificantes limites que separam as culturas eruditas e de massa, como também revela em seus escritos que: “[...]  best-sellers eruditos, sofisticados e polissêmicos que são - não se prestam pacificamente às categorias polarizadas, agradando a gregos, troianos e muitos outros”. (CECCANTINI, 2005, p. 44)
A produção literária infanto-juvenil nos últimos dez anos sofreu uma mudança significativa, isso porque as crianças também mudaram. O fundamental é que se mantenham os mesmos valores, e também o mesmo caráter profissional.
Sob esse enfoque, Lygia Bojunga Nunes apresenta uma produção ficcional que tem alcançado consagração da crítica nacional e internacional, destacando-se pela abordagem de temas sociais e polêmicos, também reveladores da vida contemporânea. Em alguns anos, mudou a apresentação visual, a estrutura e a linguagem literária e isso porque os leitores da atualidade cresceram assistindo a mídia, os jogos de videogame e, mais recentemente, a Internet. A obra P. S. Beijei, de Adriana Falcão e Mariana Veríssimo (2004), destinada a adolescentes, retrata bem essa modernidade, por meio de uma história escrita pela troca de e-mails, não somente entre as personagens, como também, pelas próprias autoras que, no decorrer da escrita se correspondiam entre si.
Nesse sentido, as obras de Lygia Bojunga Nunes, que completa trinta e seis anos, são lidas da mesma maneira prazerosa hoje, como eram quando foram lançadas. As traduções de suas obras são consideradas expressivas no contexto editorial, e isso se deve ao fato da autora tratar de temas mais amplos que não cabem nas obras com fórmulas prontas, como o amor, a amizade, entre outros valores que permeiam a vida.
O fato é que as relações humanas têm sido alvo de estudos nos mais diferentes campos do conhecimento, e a literatura reproduz essa tendência. As obras retratam dramas pessoais e mergulham na alma humana na tentativa compreendê-la melhor.
Umberto Eco, ao tecer considerações sobre seu próprio romance, no Pós-escrito a O nome da rosa (1985), afirma:


O romance pós-moderno ideal deveria superar as diatribes entre realismo e irrealismo, formalismo e “conteudismo”, literatura pura e literatura engajada, narrativa de elite e narrativa de massa...[...] atingir um vasto público e povoar seus sonhos talvez signifique fazer vanguarda, deixando-nos ainda a liberdade de dizer que povoar os sonhos dos leitores não significa necessariamente consolá-los. Pode significar obcecá-los. ( ECO, 1985, p. 59-60) (grifos do autor)


Eco revela a existência de um pensamento que averigua constantemente o significado e o alcance da literatura e da cultura de massas, um questionamento que oscila entre a crítica severa e o fascínio pelos meios de comunicação.
A literatura infanto-juvenil por muito tempo acreditou que se tratava de temas inadequados ao pequeno leitor. Os editores e autores não havia se dado conta de que os contos de fadas, assim como a vida, nem sempre terminam com um final feliz. Com o tempo o ciúme, o egoísmo, o preconceito, a violência, a falta de solidariedade, a prostituição e todos os defeitos que marcam a nossa humanidade passam a fazer parte do perfil dos personagens das histórias escritas para crianças e jovens.  Sob esse prisma, a obra de Lygia Bojunga leva, ao seu leitor, narrativas que refletem as tendências peculiares dessa sociedade.
Há alguns anos, a escritora fundou a Casa Lygia Bojunga, que publica suas obras independente das imposições do mercado editorial, sem se submeter às exigências dos editores. Quando lhe perguntaram por que se tornou editora, a autora não hesita ao responder que:


A razão primordial foi aprofundar a minha relação com o LIVRO – companheiro constante desde os meus sete anos. Sonhei percorrermos juntos todo o caminho: desde o momento em que inicio a criação de meus personagens até o dia de ver o objeto-livro pronto, na mão de meus leitores. (BOJUNGA, 2006, sinopse)


Além da editora, que completa quatro anos de sua fundação, a autora criou também a Fundação Cultural Casa Lygia Bojunga, destinada a apoiar projetos que se proponham a trazer o livro mais próximo das pessoas. Entre as ações da Fundação está a Minibiblioteca Básica, que mensalmente faz doações de exemplares para indivíduos ou instituições que desenvolvem, em qualquer lugar do país, um bom projeto de incentivo à leitura.
Diante do sucesso que suas obras atingem, a editora comemora as altas tiragens de suas obras e ainda chama a atenção para outro projeto recém-inaugurado, situado na região serrana do Rio, onde abriga o Paiol de Histórias, um bonito espaço no qual se trabalham com grupos de crianças e adolescentes da comunidade carente da área.
Para a autora, uma obra atravessa gerações com a mesma intensidade e ter sua própria editora deve ser o sonho de todo escritor. Em entrevista concedida ao Paiol de Histórias, publicada em 03/11/2006, revela que:  


 Foi uma tarefa muito complicada no começo porque tive que esperar alguns contratos terminarem. Durante quatro anos priorizei a criação da editora. Mas agora sou a dona dos meus livros, tenho uma casa para os meus personagens. Em junho, lancei dois novos livros "Sapato de salto" e "Aula de inglês", que são voltados para um público adulto ou até mesmo para adolescentes que já tenham bastante intimidade com os livros. São histórias que lidam com os permanentes conflitos sexuais, amorosos e familiares. Mas passei esse tempo todo sem escrever porque não tinha experiência como editora. Alimentei essa idéia por vários anos, mas tive que esperar o momento certo porque é preciso ter um respaldo financeiro para abrir um empreendimento desse tipo. Agora, tenho uma casa para meus personagens em Santa Tereza, no Rio de Janeiro, que é o bairro onde eu moro, que sempre esteve ligado a minha vida e a minha obra. (BOJUNGA, Paiol de Histórias, 2006)


Seguindo o mesmo princípio de Dieter Wellershoff, em Literatura, mercado e indústria cultural (1970), a autora passa, com sua própria editora, determinar as suas produções, sem nenhuma imposição de quaisquer conteúdos ou formas obrigatórias, é a sua experiência íntima, a sua subjetividade que decide.
Nessa perspectiva, histórias de qualidade literária reconhecida, como A bolsa amarela (1976), poderiam ter se transformado num romance em série, produto da Indústria Cultural. É fato, porém, que a utilização de fórmulas de sucesso aliadas a algo de novo garante o vigor da cultura de massa evitando o risco de desagradar o público, pelo excesso de repetição ou mesmo pelo excesso de novidade.
Dessa forma, um equilíbrio entre criação e padronização, inerente à dinâmica da cultura de massa, devido a sua vinculação à esfera do consumo, vem sendo utilizado pela ficção contemporânea como um caminho para a sobrevivência de autores e editores.  
Em suma, sintetiza Ceccantini que:


Se o grande desafio, hoje, é certamente o de formar leitores críticos e sensíveis em meio ao emaranhado de fios que compõem as malhas do mercado, que nos lancemos à empreitada munidos de conceitos arejados de leitura e de literatura, passando do “negócio” à “negociação” da leitura. (CECCANTINI, 2005, p. 51)


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS


ADORNO et ali., A Indústria Cultura. O Iluminismo como mistificação de massas. In: Teoria da Cultura de Massa. São Paulo: Paz e Terra, 2000.

BENJAMIN, W. A obra de arte na época de suas técnicas de reprodução. In: ______ . et alii. Textos escolhidos. Trad. José Lino Grünnewald. 2.ed. São Paulo: Abril Cultural, 1983. (Os pensadores)

BORELLI, S. H. S. Ação, suspense, emoção: literatura e cultura de massa no Brasil. São Paulo: Educ; Estação Liberdade, 1996.

CECCANTINI, J. L. C. T. Leitores de Harry Potter: do negócio à negociação da leitura. In: JACOBY, S; RETTENMAIER, M. (Org.). Além da plataforma nove e meia: pensando o fenômeno Harry Potter. Passo Fundo: UPF, 2005. p. 23-52.

ECO, U. Apocalípticos e integrados. São Paulo: Perspectiva, 1970. p. 33-67.

MACHADO, Ana Maria. Contracorrente: Conversas sobre leitura e política. São Paulo: Atica, 2003.

NUNES, B. O tempo na narrativa. São Paulo: Ática, 1995.

Parâmetros curriculares nacionais: terceiro e quarto ciclos do ensino fundamental: língua portuguesa/ Secretaria de Educação Fundamental. Brasília: MEC/SEF, 1998.

PERROTTI, E. O texto sedutor na literatura infantil. São Paulo: Ícone, 1986. (Educação crítica)

ZILBERMAN, R. A literatura infantil na escola. São Paulo: Global, 1981.

______ .  Fim do livro, fim dos leitores? São Paulo: Senac, 2001.

______ . Como e por que ler a literatura infantil brasileira. Rio de Janeiro: Objetiva, 2005.
WELLERSHOFF, D. Literatura, mercado e indústria cultural. Humboldt, n. 22, p. 44-48, 1970.



Culturas juvenis
Por: Selma Pupim

O professor José Machado Pais foi responsável pela coordenação de um dos mais importantes estudos sobre os jovens portugueses; é Licenciado em Economia e Doutorado em Sociologia, é Investigador Principal do Instituto de Ciências da Universidade de Lisboa e Professor Convidado do ISCTE, foi Professor visitante em várias Universidades européias e sul-americanas. É Vice-Presidente do Youth Directorate do Conselho da Europa e autor de diversos trabalhos publicados nos domínios da sociologia da juventude, da cultura e da vida cotidiana em revistas de Portugal e outros países.
José Machado Pais expõe em seu texto, um método de investigação, o próprio autor afirma fundamentar duas teorias num vai-e-vem dialético. 
O autor apresenta em sua obra. Culturas juvenis, publicada em 1993, duas classes de problemas específicos dos jovens, ou seja, os problemas sociais e os problemas sociológicos da juventude. E assinala que o maior desafio enfrentado pelos jovens portugueses se refere à realidade do desemprego e do trabalho precário, o que passa a ser uma das principais fontes de preocupações de muitos jovens desse país.
Conforme Machado, os problemas sociais são aqueles vividos pela juventude e estão diretamente ligados à drogas, delinqüência, desemprego entre outros; já os problemas sociológicos são dirigidos a questionamentos da realidade de como surgiram tais problemas.
Dentro das discussões em torno dos conceitos de condição juvenil, o autor lança um desafio sobre a saída da condição juvenil – da transição do jovem para vida adulta, fator de grande inquietação, uma vez que essa transição aborda diversidade de circunstâncias individuais e estruturais que marcam essa passagem. Segundo o estudioso, a temática da juventude ocupa um território cada vez maior nas ciências humanas no século XXI.
Para Machado, o retrato da juventude portuguesa é um tanto desencantado com as instituições e com os modos tradicionais de participação política; os baixos níveis de renda e de capacidade de consumo redundam na busca do trabalho como condição de sobrevivência e satisfação de necessidades materiais para a maioria desses jovens. Nessa perspectiva, a inquietação gira em torno do futuro profissional, a preocupação da maioria dos jovens é o desemprego e a falta de dinheiro.
Valendo-se de sua pesquisa, o autor inicia conceituando juventude como uma classe manipulada e manipulável por ser uma categoria dotada de interesses comuns. O autor se refere como paradoxos da juventude aos diferentes sentidos que tem tomado esse termo, assim como, os comportamentos quotidianos, modos de pensar e agir dessa faixa.
Segundo Machado, a juventude tem sido encarada como uma fase da vida marcada por problemas sociais provenientes da dificuldade de entrada dos jovens no mercado de trabalho, visto como um problema de inserção profissional. A falta de estabilidade financeira transforma-se em fonte de conflitos e problemas relacionados à aquisição de sua liberdade e independência, fazendo com que se prolonguem os laços familiares.
Diante desse quadro, a noção de juventude somente adquiriu consistência social a partir do momento em que se verifica a existência de problemas sociais entre a infância e a idade adulta.
Como propõe o autor, a juventude deve ser encarada em torno de dois eixos – como uma fase da vida e como diversidade.  A juventude é uma seqüência de trajetórias, cujo percurso leva considerar a sua diversidade.
O autor se refere à juventude tanto como um conjunto social cujo principal atributo é o de ser constituído por indivíduos pertencentes a uma dada fase da vida, como também um conjunto constituído por jovens em situações sociais diferentes.
Durante a pesquisa o autor parte do fato de que não existe apenas uma forma de transição para a vida adulta, mas várias, se constituindo num cenário de mudança das estruturas sociais.

Como já salientado, o autor conclui o seu olhar para com a juventude não apenas como um conjunto social pertencente a uma dada fase da vida, mas também como um conjunto social com atributos sociais quer diferenciam os jovens. Além disso, defende a necessidade que a juventude deve ser olhada também na sua diversidade. Assim, as diferentes juventudes e as diferentes maneiras de encará-las correspondem as diferentes teorias.
Nessa perspectiva, duas correntes são propostas: a corrente geracional e a corrente classista. A primeira entendida no sentido de fase da vida, diz respeito à continuidade e descontinuidade dos valores intergeracionais – quando as descontinuidades entre as gerações se traduzem numa clara tensão ou confrontação; essa descontinuidade estaria na base da formação da juventude como uma geração social, admitindo também a existência de uma cultura juvenil.
             Na corrente geracional, as experiências de determinados indivíduos são compartilhadas por outros indivíduos da mesma geração.
Quando a sociologia começa, nos anos 60, a explorar essa fase como fonte de problemas de rebeldia e conflitos, diversos estudos acabam reconhecendo as atitudes positivas dos jovens perante a sociedade, talvez, pela atuação do jovem de poder influir no mundo adulto. Portanto, quando se fala em socialização da juventude, o autor aponta para a assimilação de normas e valores dos jovens na vida adulta.
O autor tece uma considerável crítica quanto à corrente geracional, no sentido de olhar a juventude como uma entidade homogênea, o que a torna vulgarmente como uma categoria etária, fazendo-se assim, uma correspondência desajustada entre uma faixa de idades e um universo de interesses culturais comuns.
             A corrente classista é expressa por jovens de diferentes condições sociais e, enquanto que, para a corrente geracional a reprodução se restringe á análise da conservação das formas e conteúdos das relações sociais entre as gerações, na corrente classista, a reprodução social é basicamente vista em termos de reprodução das classes sociais. Para a corrente classista, as culturas juvenis são sempre culturas de classe, em que os problemas são compartilhados por jovens de determinada classe social. Sendo assim, a transição dos jovens para a vida adulta encontra-se em desigualdades sociais.
Diante desse quadro, o autor questiona com qual das teorias melhor se armaria e acaba construindo o seu ponto de vista por meio de uma filosofia de conhecimento, trabalhos de campo, onde passou a olhar a realidade através do quotidiano dos jovens, descobrir novas facetas das culturas juvenis, aspectos da vida dos jovens e passou a construir determinados pontos de vista.
Em suma, Macdonald após debater o conceito de juventude, analisar as correntes teóricas dominantes da sociologia da juventude, discute também alguns paradoxos da juventude; para a corrente geracional,  conclui que cada geração é possível encontrar duas tendências – uma que consiste em receber as idéias, valores da geração passada e outra que deixa fluir a sua própria espontaneidade. Ao avistar as culturas juvenis por meio do quotidiano dos jovens lhe permitiu decifrar a natureza das continuidades ou descontinuidades intergeracionais e quanto ao conceito de cultura juvenil optou por se tratar de um sistema de valores socialmente atribuídos à juventude a uma fase da vida e a valores que aderirão jovens de diferentes meios e condições sociais.
Contudo valendo-se de sua metodologia de trabalho, enfatiza que a melhor forma de olhar a sociedade é através do quotidiano dos jovens, uma condição necessária para uma correta abordagem dos paradoxos da juventude. Portanto, nada melhor que recorrer à metodologia do curso da vida como instrumento de análise para interpretar as práticas que caracterizam as culturas juvenis e as formas específicas de transição para a vida adulta.

PAIS, José Machado. Definindo uma problemática e um método de investigação. In: ______. Culturas juvenis. Lisboa: Imprensa Nacional Casa da Moeda, 1996. p. 21-66.