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sábado, 3 de setembro de 2011

O TORCEDOR, Carlos Drummond de Andrade

O Torcedor é um conto onde o grande Carlos Drummond de Andrade –  um dos maiores poetas da literatura brasileira – fala da emoção de ser torcedor do Flamengo.
Como é bom ser Flamengo!

No jogo de decisão do campeonato, Eváglio torceu pelo Atlético Mineiro, não porque fosse atleticano ou mineiro, mas porque receava o carnaval nas ruas se o Flamengo vencesse.
Visitava um amigo em bairro distante, nenhum dos dois tem carro, e ele previa que a volta seria problema. O Flamengo triunfou, e Eváglio deixou de ser atleticano para detestar todos os clubes de futebol, que perturbam a vida urbana com suas vitórias. Saindo em busca de táxi inexistente, acabou se metendo num ônibus em que não cabia mais ninguém, e havia duas bandeiras rubro-negras para cada passageiro. E não eram bandeiras pequenas nem torcedores exaustos: estes pareciam terem guardado a capacidade de grito para depois da vitória.Eváglio sentiu-se dentro do Maracanã, até mesmo dentro da bola chutada por 44 pés. A bola era ele, embora ninguém reparasse naquela esfera humana que ansiava por tornar a ser gente a caminho de casa.
Lembrando-se de que torcera pelo vencido, teve medo, para não dizer terror. Se lessem em seu íntimo o segredo, estava perdido. Mas todos cantavam, sambavam com alegria tão pura que ele próprio começou a sentir um pouco de flamengo dentro de si. Era o canto? Eram braços e pernas falando além da boca? A emanação de entusiasmo o contagiava e transformava. Marcou com a cabeça o acompanhamento da música. Abriu os lábios, simulando cantar. Cantou. Ao dar fé de si, disputava à morena frenética a posse de uma bandeira. Queria enrolar-se no pano para exteriorizar o ser partidário que pulava em suas entranhas. A moça, em vez de ceder o troféu, abraçou-se com Eváglio e beijou-o na boca. Estava batizado, crismado e ungido: uma vez Flamengo, sempre Flamengo.
O pessoal desceu na Gávea, empurrando Eváglio para descer também e continuar a festa, mas Eváglio mora em Ipanema, e já com o pé no estribo se lembrou. Loucura continuar flamengo a noite inteira à base de chope, caipirinha, batucada e o mais. Segurou firme na porta, gritou: "Eu volto, gente! Vou só trocar de roupa" e, não se sabe como, chegou intacto ao lar, já sem compromisso clubista.


ANDRADE, Carlos Drummond. De conto em conto, v. 2. São Paulo: Ática, 2001.

Medo - Cora Coralina

Não há nada de que a criatura humana tenha mais pavor do que de morto. Deve haver realmente e de forma obscura umas forças tremendas, invisíveis e imensuráveis da parte de quem morreu sobre aquele que anda firme na vida, anulando neste a capacidade de resistir á presença, ao contato ou á simples suspeita da aproximação daquele. Daí as inibições físicas e psíquicas, incontroladas, mesmo quando se trata de pessoas queridas que já se foram.
O pavor domina o vivo obliterando todo o mecanismo do raciocínio e a capacidade de indagação e pesquisa esclarecedora do sobrenatural quando este se apresenta espontaneamente. Falta aos mais destemidos e temerários a coragem de perguntar.
Nem os descrentes e corajosos e afoitos se sentem com a coragem de fazer perguntas ou indagar qualquer coisa quando o caso se apresenta.
Desse medo, medo obscuro, profundo e selvagem que a criatura não conseguiu disciplinar, surgem os casos trágicos, cômicos e humorísticos acontecidos com alguns mortos aparentes que tornaram á vida e até, mesmo, a simples aparência, suposições e engano, ligados á idéia da morte.
Viajava uma jardineira, expresso ou perua, como se diz, de Goiânia para Goianópolis. Levava na coberta, entre malas e trouxas, um caixão vazio de defunto, destinado para uma pessoa falecida naquele distrito.
Logo adiante na estrada, um homem parado, dá sinal e a perua pára.
Dentro, tudo cheio. O homem que precisava seguir sua viagem aceitou de viajar na coberta com os volumes e o caixão vazio. Subiu o tempo tinha se fechado para chuva e logo começou a pingar grosso. O sujeito em cima achou que não seria nada de mais ele entrar dentro do caixão e ali se defender da chuva. Pensou e melhor fez. Entrou, espichou bem as pernas, ajeitou a cabeça na almofadinha que ia dentro, puxou a tampa e, bem confortado, ouvia a chuva cair.
Mis adiante, dois outros esperavam condução. Deram sinal e a perua parou de novo; os homens subiram a escadinha e se acocoraram no alto. Iam conversando e molhados com a chuva fina e insistente.
Passado algum tempo que ia resguardado escutando a conversa ali em cima levantou devagarzinho a tampa do caixão e perguntou de dentro, só isto: ”Companheiro, será que a chuva já passou?”. Foi um salto só, que os dois embobados fizeram do coletivo, correndo.
Um quebrou a perna, o outro partiu braços e pernas e costelas e ficaram ambos estatelados do susto e sem fala, na estrada.


Obra: Deixa que eu conto
Editora: Global
Edição: 1ª edição
Ano: 2003