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Nossa Língua Portuguesa


PASQUALE CIPRO NETO

"Doce da saudade"


Com "Ho nostalgia di te", um italiano não diz o mesmo que um brasileiro que diz "Tenho saudade de você"?

Há duas semanas, estive em Lavras (MG), a convite da Unilavras, onde proferi uma palestra para professores e alunos. Fui levado a um restaurante. Na hora da sobremesa, uma delicada surpresa: uma das opções era o "doce da saudade". A primeira coisa que fiz foi perguntar à moça do balcão por que "doce da saudade". "É o próprio chefe da cozinha que faz. Ele aprendeu com a mãe, que já faleceu, e aí...". 
Como a nomeação de um doce pode, a um só tempo, ser tão singela e tão significativa, profunda? 
É claro que uma parte desse encantamento se deve à palavra "saudade", que os brasileiros gostam de considerar caso único no mundo ("Só a nossa língua tem essa palavra", "Só na nossa língua existe uma palavra que pode expressar esse sentimento", ouvimos com frequência). Não é bem assim. Ou será que esse sentimento é mesmo exclusividade dos brasileiros? Será que, quando diz "Ho nostalgia di te", um italiano não quer dizer o mesmo que um brasileiro que diz "Tenho saudade de você"? 
A palavra "nostalgia" (que se escreve do mesmo jeito em português, em espanhol e em italiano -em espanhol se lê "nostálgia", com o "g" friccionado; em italiano, lê-se "nostaldgía") vem de dois elementos gregos ("nostós", que significa "regresso", e "algia", que significa "dor"). Originariamente, a nostalgia é a dor do regresso, a "melancolia profunda causada pelo afastamento da terra natal" ("Houaiss"). Por extensão de sentido, a palavra passa a transmitir (nas línguas que citei e em outras) muitas das ideias que se transmitem, em português, com "saudade".
Originária do latim "solitatis" ("soledade", "solidão", "desamparo"), a nossa "saudade" já originou metáforas memoráveis, inesquecíveis. Na antológica canção "Pedaço de Mim", de 1977, o grande Chico Buarque pintou algumas das mais belas e pungentes imagens sobre esse nobilíssimo sentimento. Uma delas é esta: "A saudade dói como um barco que aos poucos descreve um arco e evita atracar no cais".
Salvo engano, o professor Sérgio Buarque de Holanda, autor do sempre e ainda fundamental livro "Raízes do Brasil" (de 1936), considerava estes os versos mais belos da música popular brasileira: "A saudade é o revés de um parto, a saudade é arrumar o quarto do filho que já morreu". Nem de longe se pode dizer que o grande intelectual e Professor foi parcial ao citar os versos do filho querido e ilustre. Não é preciso ser pai de Chico Buarque para consagrar esses versos como dos mais fundos e belos que a alma humana já produziu. 
Em homenagem ao chefe de cozinha do restaurante de Lavras, junto aos versos de Chico estes, de Drummond (de "Para Sempre"): "Morrer acontece / com o que é breve e passa / sem deixar vestígio. / Mãe, na sua graça, / é eternidade. / Por que Deus se lembra / -mistério profundo- / de tirá-la um dia? / Fosse eu Rei do Mundo, / baixava uma lei: / Mãe não morre nunca, / mãe ficará sempre / junto de seu filho / e ele, velho embora, / será pequenino / feito grão de milho". 
Antes que alguém pergunte, comi, sim (e muito), do "doce da saudade". Já me é uma deliciosa saudade e uma saudosa delícia. É isso. 

Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidian/ff031120.htm> Acesso em: 03/11/2011.


PASQUALE CIPRO NETO

'Pense diferente(mente)'

RECEBI DA companheira de Folha Denise Godoy (http://denysegodoy.folha.blog.uol.com.br) uma mensagem, da qual transcrevo este trecho: "Eu estava hoje conversando com meu amigo Luiz Calado a respeito de um trecho da biografia do Steve Jobs em que se discute a escolha de determinadas palavras para um discurso, e, diante da dúvida sobre como tal dilema se resolveria em português, decidi lhe escrever. Resumidamente, a discussão é a seguinte: em inglês, não está exatamente correto dizer 'think different' ('pense diferente'), expressão que viria a se tornar o slogan da Apple depois. O certo seria 'think differently' ('pense diferentemente'), porque, se 'diferente' se refere a 'pense', teria que ser usado um advérbio. Porém Jobs queria o 'diferente' mesmo".
Em seguida, Denise me mandou um trecho do livro sobre Jobs (em inglês) em que se discute justamente a questão da diferença entre "different" ("diferente") e "differently" ("diferentemente") como acompanhantes da forma verbal "think" ("pense"). Conhecedor da diferença gramatical entre "different" e "differently", Jobs (diz o livro, numa tradução minha -ai, ai, ai...) "insistiu em que queria 'different' usado como um nome, como em 'pense vitória' ou 'pense beleza', que remete também ao uso coloquial, como 'pense grande'. Jobs mais tarde explicou que...".
Bem, para encurtar a história, Jobs explicou que "discutimos se isso era correto antes de pôr a coisa adiante". Diz ele que a construção é gramatical, "se se pensar no que tentamos dizer". Jobs termina dizendo que para ele "Pense diferentemente" não teria o mesmo alcance.
Essa questão me lembra a discussão sobre a bendita cerveja, que muitos ainda querem que desça "redonda". A Skol (acho) nem usa mais a frase, mas o mundo ainda me pergunta se a cerveja não deveria descer "redonda", se não está errado dizer que ela "desce redondo" etc.
Por acaso a gente não diz coisas como "Ela me olhou torto", "Elas me olharam torto", "Ela/s sempre faz/em tudo muito rápido"? É da nossa língua (e de muitas outras) o uso (mais do que legítimo) do adjetivo que dá origem ao advérbio no lugar do advérbio propriamente dito, ou seja, de "redondo" no lugar de "redondamente" ("A cerveja que desce redondamente"), de "rápido" no lugar de "rapidamente" ("Ela/s sempre faz/em tudo muito rapidamente"), de "claro" no lugar de "claramente" ("Fale claro" em vez de "Fale claramente") etc.
Não vou meter o meu bedelho na língua dos outros (o inglês, no caso), mas sinto-me à vontade para dizer que é perfeitamente compreensível o que Jobs queria -e esse querer não seria diferente se a língua de Jobs fosse o nosso português. De fato, em português a construção "Pense diferentemente" teria apenas um sentido, enquanto "Pense diferente" poderia ter dois (o de "pense diferentemente", ou seja, "pense diferentemente de como pensam os outros, de como pensa a maioria" e o de algo como o que diz Steve Jobs).
Não resisto à tentação de citar Caetano Veloso, que, na genial canção "O Estrangeiro" (de 1989), fez o mesmo em "Pense Seurat e pense impressionista". Seurat, convém dizer, foi um pintor francês (1859 - 1891).
Embates gramaticais à parte, pensar diferente(mente) é mesmo muito bom. Digo isso aos meus alunos desde 1975, isto é, desde que iniciei o ofício de professor. E nunca me cansei de dizer isso aos meus filhos, às pessoas com quem convivo etc. É isso.

Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidian/ff2710201104.htm> Acesso em: 27/10/2011.