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sexta-feira, 17 de setembro de 2010

“UM AMIGO DE INFÂNCIA” (DE HUMBERTO DE CAMPOS)

Aos treze anos da minha idade, e três da sua, separamo-nos, o meu cajueiro e eu. Embarco para o Maranhão, e ele fica. Na hora, porém, de deixar a casa, vou levar-lhe o meu adeus. Abraçando-me ao seu tronco, aperto-o de encontro ao meu peito. A resina transparente e cheirosa corre-lhe do caule ferido. Na ponta dos ramos mais altos abotoam os primeiros cachos de flores miúdas e arroxeadas como pequeninas unhas de crianças com frio.
- Adeus, meu cajueiro! Até à volta!
Ele não diz nada, e eu me vou embora.
Da esquina da rua, olho ainda, por cima da cerca, a sua folha mais alta, pequenino lenço verde agitado em despedida. E estou em S. Luís, homem-menino, lutando pela vida, erijando o corpo no trabalho bruto e fortalecendo a alma no sofrimento, quando recebo uma comprida lata de folha acompanhando uma carta de minha mãe: “Receberás com esta uma pequena lata de doce de caju, em calda. São os primeiros cajus do teu cajueiro. São deliciosos, e ele te manda lembranças…”
Há, se bem me lembro, uns versos de Kipling, em que o Oceano, o Vento e a Floresta palestram e blasfemam. E o mais desgraçado dos três é a Floresta, porque, enquanto as ondas e as rajadas percorrem terras e costas, ela, agrilhoada ao solo com as raízes das árvores, braceja, grita, esgrime com os galhos furiosos, e não pode fugir, nem viajar… Recebendo a carta de minha mãe, choro, sozinho. Choro, pela delicadeza da sua idéia. E choro, sobretudo, com inveja do meu cajueiro. Por que não tivera eu, também, raízes como ele, para me não afastar nunca, jamais, da terra em que eu, ignorando que o era, havia sido feliz?
Volto, porém. O meu cajueiro estende, agora, os braços, na ânsia cristã de dar sombra a tudo. A resina corre-lhe do tronco, mas ele se embala, contente, à música dos mesmos ventos amigos. Os seus galhos mais baixos formam cadeiras que oferece às crianças. Tem flores para os insetos faiscantes e frutos de ouro pálido para as pipiras cinzentas. É um cajueiro moço, e robusto. Está em toda a força e em toda a glória ingênua da sua existência vegetal.
Um ano mais, e parto novamente. Outra despedida; outro adeus mais surdo, e mais triste:
-Adeus, meu cajueiro!
O mundo toma-me nos seus braços titânicos, arrepiados de espinhos. Diverte-se comigo como a filha do rei de Brobdingnag com a fragilidade do capitão Guliver. O monstro maltrata-me, fere-me, tortura-me. E eu, quase morto, regresso a Parnaíba, volto a ver minha casa, e a rever o meu amigo.
- Meu cajueiro, aqui estou!
Mas ele não me conhece mais. Eu estou homem; ele está velho. A enfermidade cava-me o rosto, altera-me a fisionomia, modifica-me o tom da voz. Ele está imenso e escuro. Os seus galhos abraçam coqueiros, afogam laranjeiras que noivam, ou ultrapassam a cerca e vão dar sombra, na rua, às cabras cansadas, aos mendigos sem pouso, às galinhas sem dono… Quero abraçá-lo, e já não posso. Em torno ao seu tronco fizeram um cercado estreito. No cercado imundo, mergulhado na lama, ressona um porco… Ao perfume suave da flor, ao cheiro agreste do fruto, sucederam, em baixo, a vasa e a podridão!
- Adeus, meu cajueiro!



2 Comentários

  • selma01, junho 5, 2010 @ 12:16 am
    Em 8/12/2009, às 13:08:40, Stenia disse:
    adoro esse capitulo
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    Em 6/01/2010, às 01:26:40, Inês | e-mail disse:
    Este fragmento das memórias de Humberto de Campos, sempre me chamou bastante atenção, durante todo o tempo que lecionei sempre usei como um exemplo de boa e reconfortante leitura. É lindo! “O meu cajueiro”
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    Em 16/01/2010, às 22:42:40, Carlos Agra disse:
    Adoro este texto! Todo começo de ano letivo gosto de usá-lo para incentiva leituras, produções e mover os sentimentos dos alunos. Mostrar valores e mover saudades, que é um sentimento que está se esfriando em nossos tempos atuais, como o amor, também, e devemos procurar resgatá-los. É um excelente texto para se falar de amor, saudade, respeito, e de resgate de histórias, porque todo mundo tem ou dever ter história, a sua história, construída a seu tempo, a seu modo, e tudo tem suas enraizes no seu lugar de origem, onde se nasceu.Cada fase de nossa vida tem capítulos pelos quais alguém vai se interessar e gostarde saber.Quem não gosta de sua terra natal? Ela nos atrai. Tenha ela sofrido a transformação que tiver, mas o retrato que vai sempre estar em nossas mentes é o que ficou quando deixamos.
    Realmente é um texto lindo! A gente o lê com o coração.
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    Em 16/04/2010, às 21:07:19, EDER MENDES LIMA | e-mail disse:
    HOJE FAZENDO MEU MEMORIAL LEMBREI-ME DESSE TEXTO EM QUE TINHA 11 ANOS, CITEI-O E RECORRI A NET E ENCOTREI QUE MASSA.. RELEMBREI VEHOS TEMPOS. HOJE ESPECIALISTA EM EDUCAÇÃO E CURSANDO BIOLOGIA.. TOU MUITO FELIZ…
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    Em 27/04/2010, às 15:51:37, Edir Evangelista da Silva | e-mail disse:
    Conheci este texto aos 13 anos, com minha professora de português. Sempre tive saudades deste texto, é maravilhoso poder lê-lo novamente. Cheguei a pedir para a senhora que foi a professora, porém; não o havia conseguido. É maravilhoso, recordar minha infância através deste texto. Muito obrigado por disponibilizá-lo.
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    Em 4/06/2010, às 18:52:43, Selma Cristina Freitas Pupim | página pessoal | e-mail disse:
    Durante anos procurei por este texto; ele faz parte de minhas memórias de infância. Foi o primeiro texto que ouvi no meu primeiro dia de aula, isso há mais de 40 anos e nunca me esqueci dele. Guardava na memória os primeiros parágrafos e o procurei como quem procura por algo sublime. O meu cajueiro abriu as portas da leitura do mundo para mim.
  • Paloma, julho 7, 2010 @ 5:42 am
    Lindo esse texto, Selma.
    Continue atualizando seu Blog!
    Beijos…
    Paloma

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