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sábado, 3 de setembro de 2011

Medo - Cora Coralina

Não há nada de que a criatura humana tenha mais pavor do que de morto. Deve haver realmente e de forma obscura umas forças tremendas, invisíveis e imensuráveis da parte de quem morreu sobre aquele que anda firme na vida, anulando neste a capacidade de resistir á presença, ao contato ou á simples suspeita da aproximação daquele. Daí as inibições físicas e psíquicas, incontroladas, mesmo quando se trata de pessoas queridas que já se foram.
O pavor domina o vivo obliterando todo o mecanismo do raciocínio e a capacidade de indagação e pesquisa esclarecedora do sobrenatural quando este se apresenta espontaneamente. Falta aos mais destemidos e temerários a coragem de perguntar.
Nem os descrentes e corajosos e afoitos se sentem com a coragem de fazer perguntas ou indagar qualquer coisa quando o caso se apresenta.
Desse medo, medo obscuro, profundo e selvagem que a criatura não conseguiu disciplinar, surgem os casos trágicos, cômicos e humorísticos acontecidos com alguns mortos aparentes que tornaram á vida e até, mesmo, a simples aparência, suposições e engano, ligados á idéia da morte.
Viajava uma jardineira, expresso ou perua, como se diz, de Goiânia para Goianópolis. Levava na coberta, entre malas e trouxas, um caixão vazio de defunto, destinado para uma pessoa falecida naquele distrito.
Logo adiante na estrada, um homem parado, dá sinal e a perua pára.
Dentro, tudo cheio. O homem que precisava seguir sua viagem aceitou de viajar na coberta com os volumes e o caixão vazio. Subiu o tempo tinha se fechado para chuva e logo começou a pingar grosso. O sujeito em cima achou que não seria nada de mais ele entrar dentro do caixão e ali se defender da chuva. Pensou e melhor fez. Entrou, espichou bem as pernas, ajeitou a cabeça na almofadinha que ia dentro, puxou a tampa e, bem confortado, ouvia a chuva cair.
Mis adiante, dois outros esperavam condução. Deram sinal e a perua parou de novo; os homens subiram a escadinha e se acocoraram no alto. Iam conversando e molhados com a chuva fina e insistente.
Passado algum tempo que ia resguardado escutando a conversa ali em cima levantou devagarzinho a tampa do caixão e perguntou de dentro, só isto: ”Companheiro, será que a chuva já passou?”. Foi um salto só, que os dois embobados fizeram do coletivo, correndo.
Um quebrou a perna, o outro partiu braços e pernas e costelas e ficaram ambos estatelados do susto e sem fala, na estrada.


Obra: Deixa que eu conto
Editora: Global
Edição: 1ª edição
Ano: 2003

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