"A poesia não se escreve com idéias,
escreve-se com palavras."
Mallarmé
Com efeito, quando falamos, dizemos algo a alguém; mas, no texto literário, para quem escrevemos? O falante escolhe o seu ouvinte, ao passo que o escritor não sabe para quem escreve, nem pode ter certeza de que realmente haja alguém para quem escreva, posto que é o leitor quem escolhe o texto.
Mas, além disso, Barthes sublinha que, "no texto, só o leitor fala".2
Assim, a escrita sem leitura é como uma voz sem sonoridade. Não uma voz interior, mas uma não-fala. Sequer um silêncio significativo, mas uma ausência ignorada, já que a leitura (e cada releitura) é como o sopro inaugural que infunde o hálito da vida (ânimo, alma) à matéria inerte (modelada em significantes "com o pó apanhado do solo" - Gn 2,7).
Ao menos seis vozes (seis códigos) ouvem-se no texto: a voz do leitor, a voz da pessoa, a voz da empiria, a voz da ciência, a voz do símbolo e a voz da verdade.
Voz da pessoa: "o próprio da narrativa não é a acão, mas o personagem como nome próprio" (ideologia, conotações e denotações, código sêmico).4
Voz da verdade: interpretação do texto (código hermenêutico).
Nesse emaranhado polifônico, o leitor se apropria do texto ao lê-lo, atribuindo-lhe uma sapiência. E, ao fazê-lo, frui, goza, delicia-se com o prazer da leitura, degusta o sabor do texto, decodificando-o.
"Sapiência" vem do latim sapientìa, ae, significando: sabor, bom paladar; aptidão, habilidade, capacidade, instrução; razão, bom senso; sabedoria, prudência, siso, tino; moderação, indulgência, benignidade.
Na versão de Barthes, "sapientia: nenhum poder, um pouco de saber, um pouco de sabedoria, e o máximo de sabor possível".6
A linguagem é a matéria-prima com a qual se produz o texto e sobre a qual se debruça o leitor. Todavia, a linguagem é ardilosa.
"O poder (a libido dominandi) aí está, emboscado em todo e qualquer discurso", aponta Barthes. E ele se indaga "sob que condições e segundo que operações o discurso pode despojar-se de todo desejo de agarrar".7 Esclarecendo: "chamo discurso de poder todo discurso que engendra o erro e, por conseguinte, a culpabilidade daquele que o recebe".8
Estamos condenados à articulação dos signos disponíveis na língua, segundo as regras da gramática, sob pena da incomunicabilidade: inacessibilidade, insociabilidade, intratabilidade, misantropia.
Por isso, "só resta, por assim dizer, trapacear com a língua, trapacear a língua".11
A literatura é essa trapaça da língua pela língua: ação ardilosa, de má-fé; fraude, logro. "Essa trapaça salutar, essa esquiva, esse logro magnífico que permite ouvir a língua fora do poder, no esplendor de uma revolução permanente da linguagem, eu a chamo, quanto a mim: literatura."12
E em que consiste o fazer literário, senão na tessitura de um conjunto de expressões fixadas na escrita (uma escritura?) que ganham significação ao serem lidas?
Pois é na esquiva (escusa, recusa; negação, ginga) que reside a arte da escrita: escritura. Escritura, diferente de escrituração. Escritura, modo ou arte de se expressar num texto literário. Escritura, prática da linguagem escrita por meio da qual um escritor se individualiza e afirma sua liberdade de escolha como sujeito, sua filiação estética. Sagradas escrituras...
Dessas forças, Barthes distingue três: Mathesis, Mimesis, Semiosis.
Mathesis: "todas as ciências estão presentes no monumento literário".14
Nesse sentido, a literatura "é absolutamente, categoricamente realista: ela é a realidade, isto é, o próprio fulgor do real" (o calor do Sol é o próprio Sol). Todavia, "ela faz girar os saberes, não fixa, não fetichiza nenhum deles", pois "a literatura trabalha nos interstícios da ciência".15
"Quer ela reproduza a diversidade dos socioletos, quer, a partir dessa diversidade, cujo dilaceramento ela ressente, imagine e busque elaborar uma linguagem limite, que seria o seu grau zero", a literatura "encena a linguagem, em vez de, simplesmente, utilizá-la". É nessa encenação que, "através da escritura, o saber reflete incessamente sobre o saber".16
De modo que "a escritura faz do saber uma festa", posto que ela "se encontra em toda parte onde as palavras têm sabor".17
Mimesis: recriação, na obra literária, da realidade.
Barthes formula o paradoxo da literatura: "não se pode fazer coincidir uma ordem pluridimensional (o real) a uma ordem unidimensional (a linguagem)".18 Por isso, além de ser "categoricamente realista", a literatura também é obstinadamente irrealista: "ela acredita sensato o desejo do impossível". Para Barthes, "essa função, talvez perversa, portanto feliz, tem um nome: é a função utópica".19
Barthes observa que "se leio com prazer essa frase, essa história ou essa palavra, é porque foram escritas no prazer".23 Porém, a recíproca nem sempre é verdadeira: escrever no prazer não garante o prazer do leitor.
O texto-tagarelice é "um texto frígido, como o é qualquer procura, antes que nela se forme o desejo, a neurose". 26
Desejo – obscuro objeto que se desloca, escapa, não se deixando agarrar.
Voyeurismos – texto de prazer, texto de fruição. Texto de prazer, prazer do texto (contentamento).
Nas palavras de Vieira:
"Semeadores do Evangelho, eis aqui o que devemos pretender nos nossos sermões: não que os homens saiam contentes de nós, senão que saiam muito descontentes de si; não que lhes pareçam bem os nossos conceitos, mas que lhes pareçam mal os seus costumes, as suas vidas, os seus passatempos, as suas ambições, e enfim, todos os seus pecados. Contanto que se descontentem de si, descontentem-se embora de nós."37
Pecado – desconforto do texto que semeia culpas com base em verdades (modelos eternos e perfeitos): escritor-demiurgo.
Texto de fruição – outro paradigma: deslocamentos, dúvidas, imprecisões.
Texto que desconforta – novo paradigma: para Barthes, "é chamado escritor, não aquele que exprime o seu pensamento, sua paixão ou sua imaginação por meio de frases, mas aquele que pensa frases".38 Frases que instaurem a incerteza. (O que equivale a um programa.)
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Referência bibliográfica:
1 BARTHES, Roland. S/Z. Edições 70, p. 114.
2 Idem, p. 115; 3 Idem, p. 115.
Lexia: unidade do léxico (vocábulos, expressões idiomáticas, locuções etc.).
4 Idem, p. 143.
Sema: cada unidade mínima de significação, que, combinada com outras, define o significado de morfemas e palavras; traço semântico, componente semântico.
5 Idem, p. 152; 6 BARTHES, Roland. Aula. São Paulo: Cultrix, p. 47.
7 Idem, p. 10; 8 Idem, p. 11; 9 Idem, pp. 12-13.
10 Idem, p. 14; 11 Idem, p. 16; 12 Idem, p. 16.
13 Idem, p. 17; 14 Idem, p. 18; 15 Idem, p.18.
16 Idem, p. 19; 17 Idem, p. 21; 18 Idem, p. 22.
19 Idem, p. 23; 20 Idem, pp. 25-26; 21 Idem, pp. 26-27.
22 Idem, pp. 28-29.
24 Idem, p. 9; 25 Idem, p. 9; 26 Idem, p. 10.
27 Idem, p. 11; 28 Idem, p. 12; 29 Idem, p. 12.
30 Idem, p. 16; 31 Idem, p. 19; 32 Idem, p. 19.
33 Idem, p. 19; 34 Idem, p. 20; 35 Idem, pp. 20-21
36 VIEIRA, Antônio. Sermões escolhidos. São Paulo: MartinClaret, 2003, Sermão da Sexagésima ou do Evangelho, p. 109.
Segundo Afrânio Coutinho, o Padre Antônio Vieira é "um grande da literatura brasileira e não da portuguesa, que nada tem a ver com o barroco". [A Literatura no Brasil, vol. 6, p. 310]
37 Idem, p. 109.
38 BARTHES, Roland. O prazer do texto. 3ª ed., São Paulo: Perspectiva, 2002, p. 61.
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