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domingo, 9 de outubro de 2011

BARTHES: TEXTO, LEITOR E LINGUAGEM

Sergio Ribeiro Granja


Autor do romance LOUCO D'ALDEIA EM DOIS TEMPOS (Record, 1996)


"A poesia não se escreve com idéias,
escreve-se com palavras."
Mallarmé


Barthes observa que "a escrita tem esse poder de operar um verdadeiro silêncio sobre a destinação". Por isso, ele a nomeia de "contra-comunicação", "cacografia".1

Com efeito, quando falamos, dizemos algo a alguém; mas, no texto literário, para quem escrevemos? O falante escolhe o seu ouvinte, ao passo que o escritor não sabe para quem escreve, nem pode ter certeza de que realmente haja alguém para quem escreva, posto que é o leitor quem escolhe o texto.

Mas, além disso, Barthes sublinha que, "no texto, só o leitor fala".2

Assim, a escrita sem leitura é como uma voz sem sonoridade. Não uma voz interior, mas uma não-fala. Sequer um silêncio significativo, mas uma ausência ignorada, já que a leitura (e cada releitura) é como o sopro inaugural que infunde o hálito da vida (ânimo, alma) à matéria inerte (modelada em significantes "com o pó apanhado do solo" - Gn 2,7).

Ao menos seis vozes (seis códigos) ouvem-se no texto: a voz do leitor, a voz da pessoa, a voz da empiria, a voz da ciência, a voz do símbolo e a voz da verdade.

Voz do leitor: "a escrita é ativa porque age pelo leitor" (lexias, quebras aleatórias do texto).3

Voz da pessoa: "o próprio da narrativa não é a acão, mas o personagem como nome próprio" (ideologia, conotações e denotações, código sêmico).4


Voz da empiria: narrativa "sequencial, simultaneamente sintagmática e ordenada" das acões (código proiarético). 5

Voz da ciência: as referências do texto (código cultural).

Voz do simbólico: a simbologia textual (código simbólico).

Voz da verdade: interpretação do texto (código hermenêutico).

Nesse emaranhado polifônico, o leitor se apropria do texto ao lê-lo, atribuindo-lhe uma sapiência. E, ao fazê-lo, frui, goza, delicia-se com o prazer da leitura, degusta o sabor do texto, decodificando-o.

"Sapiência" vem do latim sapientìa, ae, significando: sabor, bom paladar; aptidão, habilidade, capacidade, instrução; razão, bom senso; sabedoria, prudência, siso, tino; moderação, indulgência, benignidade.

Na versão de Barthes, "sapientia: nenhum poder, um pouco de saber, um pouco de sabedoria, e o máximo de sabor possível".6

A linguagem é a matéria-prima com a qual se produz o texto e sobre a qual se debruça o leitor. Todavia, a linguagem é ardilosa.

"O poder (a libido dominandi) aí está, emboscado em todo e qualquer discurso", aponta Barthes. E ele se indaga "sob que condições e segundo que operações o discurso pode despojar-se de todo desejo de agarrar".7 Esclarecendo: "chamo discurso de poder todo discurso que engendra o erro e, por conseguinte, a culpabilidade daquele que o recebe".8

Parafraseando Jakobson, Barthes diz que "um idioma se define menos pelo que ele permite dizer, do que por aquilo que ele obriga a dizer".9 E, mais adiante, enfático: "a língua, como desempenho de toda linguagem, não é nem reacionária, nem progressista; ela é simplesmente: fascista; pois o fascismo não é impedir de dizer, é obrigar a dizer".10

Estamos condenados à articulação dos signos disponíveis na língua, segundo as regras da gramática, sob pena da incomunicabilidade: inacessibilidade, insociabilidade, intratabilidade, misantropia.

Por isso, "só resta, por assim dizer, trapacear com a língua, trapacear a língua".11

A literatura é essa trapaça da língua pela língua: ação ardilosa, de má-fé; fraude, logro. "Essa trapaça salutar, essa esquiva, esse logro magnífico que permite ouvir a língua fora do poder, no esplendor de uma revolução permanente da linguagem, eu a chamo, quanto a mim: literatura."12

E em que consiste o fazer literário, senão na tessitura de um conjunto de expressões fixadas na escrita (uma escritura?) que ganham significação ao serem lidas?

Pois é na esquiva (escusa, recusa; negação, ginga) que reside a arte da escrita: escritura. Escritura, diferente de escrituração. Escritura, modo ou arte de se expressar num texto literário. Escritura, prática da linguagem escrita por meio da qual um escritor se individualiza e afirma sua liberdade de escolha como sujeito, sua filiação estética. Sagradas escrituras...

"É no interior da língua que a língua deve ser combatida, desviada", ensina Barthes, "pelo jogo das palavras de que ela é o teatro". Jogar, negacear, gingar – "trabalho de deslocamento" que o escritor "exerce sobre a língua". Aí estão "as forças de liberdade que residem na literatura". O que evoca "uma responsabilidade da forma".13

Dessas forças, Barthes distingue três: Mathesis, Mimesis, Semiosis.

Mathesis: "todas as ciências estão presentes no monumento literário".14

Nesse sentido, a literatura "é absolutamente, categoricamente realista: ela é a realidade, isto é, o próprio fulgor do real" (o calor do Sol é o próprio Sol). Todavia, "ela faz girar os saberes, não fixa, não fetichiza nenhum deles", pois "a literatura trabalha nos interstícios da ciência".15

"Quer ela reproduza a diversidade dos socioletos, quer, a partir dessa diversidade, cujo dilaceramento ela ressente, imagine e busque elaborar uma linguagem limite, que seria o seu grau zero", a literatura "encena a linguagem, em vez de, simplesmente, utilizá-la". É nessa encenação que, "através da escritura, o saber reflete incessamente sobre o saber".16

Saber vem do latim sapìo, is, ùi ,ívi (ou ìi e í), ère, significando: ter sabor, ter bom paladar, ter cheiro, sentir por meio do gosto, ter inteligência, ser sensato, prudente, conhecer, compreender, saber.

De modo que "a escritura faz do saber uma festa", posto que ela "se encontra em toda parte onde as palavras têm sabor".17

Mimesis: recriação, na obra literária, da realidade.

Barthes formula o paradoxo da literatura: "não se pode fazer coincidir uma ordem pluridimensional (o real) a uma ordem unidimensional (a linguagem)".18 Por isso, além de ser "categoricamente realista", a literatura também é obstinadamente irrealista: "ela acredita sensato o desejo do impossível". Para Barthes, "essa função, talvez perversa, portanto feliz, tem um nome: é a função utópica".19

Porém, "a utopia da língua é recuperada como língua da utopia", e aí não resta ao autor "senão o deslocamento – ou a teimosia – ou os dois ao mesmo tempo".20 Teimar é "manter ao revés e contra tudo a força de uma deriva e de uma espera". Deslocar-se é "transportar-se para onde não se é esperado, ou ainda e mais radicalmente, abjurar o que se escreveu (mas não, forçosamente, o que se pensou)".21

Semiosis: "a terceira força da literatura, sua força propriamente semiótica, consiste em jogar com os signos em vez de destruí-los, em colocá-los numa maquinaria de linguagem cujos breques e travas de segurança arrebentaram, em suma, em instituir no próprio seio da linguagem servil uma verdadeira heteronímia das coisas".22

Mathesis, Mimesis, Semiosis – o prazer do texto. Vários prazeres, o prazer é plural: jogar com o saber, a realidade, os signos – o prazer lúdico; ironizar o saber, a realidade, os signos – o prazer satírico; sensualizar o saber, a realidade, os signos – o prazer erótico; etc.

Barthes observa que "se leio com prazer essa frase, essa história ou essa palavra, é porque foram escritas no prazer".23 Porém, a recíproca nem sempre é verdadeira: escrever no prazer não garante o prazer do leitor.


O escritor não escreve para um leitor determinado, mas para um leitor hipotético. É a este (e não àquele) que ele busca incessantemente como "a possibilidade de uma dialética do desejo, de uma imprevisão do desfrute: que os dados não estejam lançados, que haja um jogo".24

Jogatina, o prazer do jogo. Porque fora do prazer de escrever, o que há é a tagarelice. E "a tagarelice do texto é apenas essa espuma de linguagem que se forma sob o efeito de uma simples necessidade de escritura". 25

O texto-tagarelice é "um texto frígido, como o é qualquer procura, antes que nela se forme o desejo, a neurose". 26

Desejo – obscuro objeto que se desloca, escapa, não se deixando agarrar.

O escritor deve provar que deseja o leitor, precisa desesperadamente fazer-se merecedor dele, seduzi-lo. "Essa prova existe: é a escritura." Escritura: "ciência das fruições da linguagem".27

A escritura é o compromisso que o texto encena entre duas margens: "uma margem sensata, conforme, plagiária (trata-se de copiar a língua em seu estado canônico, tal como foi fixada pela escola, pelo uso correto, pela literatura, pela cultura), e uma outra margem, móvel, vazia (apta a tomar não importa quais contornos) que nunca é mais do que o lugar de seu efeito: lá onde se entrevê a morte da linguagem".28

Mas o prazer do texto não se frui numa margem nem noutra. Pois o prazer é "o lugar de uma perda, é a fenda, o corte, a deflação, o fading que se apodera do sujeito no imo da fruição".29 "É a intermitência, como o disse muito bem a psicanálise, que é erótica". O que seduz é "a encenação de um aparecimento-desaparecimento".30

Voyeurismos – dois regimes de leitura: "uma vai direto às articulações da anedota, considera a extensão do texto, ignora os jogos de linguagem"; ao passo que "a outra leitura não deixa passar nada".31 Barthes observa que "esta segunda leitura, aplicada (no sentido próprio), é a que convém ao texto-moderno, ao texto-limite".32 Posto que "a fenda das duas margens, o interstício da fruição, produz-se no volume das linguagens, na enunciação, não na seqüência dos enunciados".33

Voyeurismos – texto de prazer, texto de fruição. Texto de prazer, prazer do texto (contentamento).


"Texto de prazer: aquele que contenta, enche, dá euforia; aquele que vem da cultura, não rompe com ela, está ligado a uma prática confortável de leitura."34

Texto de fruição, fruição do texto (desvanecimento).

"Texto de fruição: aquele que põe em estado de perda, aquele que desconforta (talvez até um certo enfado), faz vacilar as bases históricas, culturais, psicológicas do leitor, a consistência de seus gostos, de seus valores e de suas lembranças, faz entrar em crise sua relação com a linguagem." 35

Essa distinção entre o texto que conforta e o que desconforta, já a encontramos no barroco luso-brasileiro: em 1655, no Sermão da Sexagésima, o Padre Antônio Vieira ensinava que "quando o ouvinte vai do sermão para casa confuso e atônito, sem saber parte de si, então é a pregação que convém".36

Texto que desconforta: inversão de paradigma.

Nas palavras de Vieira:

"Semeadores do Evangelho, eis aqui o que devemos pretender nos nossos sermões: não que os homens saiam contentes de nós, senão que saiam muito descontentes de si; não que lhes pareçam bem os nossos conceitos, mas que lhes pareçam mal os seus costumes, as suas vidas, os seus passatempos, as suas ambições, e enfim, todos os seus pecados. Contanto que se descontentem de si, descontentem-se embora de nós."37

Pecado – desconforto do texto que semeia culpas com base em verdades (modelos eternos e perfeitos): escritor-demiurgo.

Texto de fruição – outro paradigma: deslocamentos, dúvidas, imprecisões.

Texto que desconforta – novo paradigma: para Barthes, "é chamado escritor, não aquele que exprime o seu pensamento, sua paixão ou sua imaginação por meio de frases, mas aquele que pensa frases".38 Frases que instaurem a incerteza. (O que equivale a um programa.)

___________________
Referência bibliográfica:
1 BARTHES, Roland. S/Z. Edições 70, p. 114.
2 Idem, p. 115; 3 Idem, p. 115.
Lexia: unidade do léxico (vocábulos, expressões idiomáticas, locuções etc.).
4 Idem, p. 143.
Sema: cada unidade mínima de significação, que, combinada com outras, define o significado de morfemas e palavras; traço semântico, componente semântico.
5 Idem, p. 152; 6 BARTHES, Roland. Aula. São Paulo: Cultrix, p. 47.
7 Idem, p. 10; 8 Idem, p. 11; 9 Idem, pp. 12-13.
10 Idem, p. 14; 11 Idem, p. 16; 12 Idem, p. 16.
13 Idem, p. 17; 14 Idem, p. 18; 15 Idem, p.18.
16 Idem, p. 19; 17 Idem, p. 21; 18 Idem, p. 22.
19 Idem, p. 23; 20 Idem, pp. 25-26; 21 Idem, pp. 26-27.
22 Idem, pp. 28-29.
24 Idem, p. 9; 25 Idem, p. 9; 26 Idem, p. 10.
27 Idem, p. 11; 28 Idem, p. 12; 29 Idem, p. 12.
30 Idem, p. 16; 31 Idem, p. 19; 32 Idem, p. 19.
33 Idem, p. 19; 34 Idem, p. 20; 35 Idem, pp. 20-21
36 VIEIRA, Antônio. Sermões escolhidos. São Paulo: MartinClaret, 2003, Sermão da Sexagésima ou do Evangelho, p. 109.
Segundo Afrânio Coutinho, o Padre Antônio Vieira é "um grande da literatura brasileira e não da portuguesa, que nada tem a ver com o barroco". [A Literatura no Brasil, vol. 6, p. 310]
37 Idem, p. 109.
38 BARTHES, Roland. O prazer do texto. 3ª ed., São Paulo: Perspectiva, 2002, p. 61.



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