Total de visualizações de página

quinta-feira, 16 de setembro de 2010

Amós Oz / Leia um capítulo de "Cenas da Vida na Aldeia"

Novembro/2009

Amós Oz - Música de Câmara Crítica

Em "Cenas da Vida na Aldeia", o israelense Amós Oz segue evitando os heroísmos e grandes acontecimentos. Ele usa a vida doméstica para falar de solidão e preconceito

Por Jonas Lopes
Bel Pedrosa
O israelense Amós Oz. Seu novo livro homenageia Winesburg, Ohio, do escritor americano Sherwood Anderson
VEJA MAIS

No autobiográfico De Amor e Trevas (2002), Amós Oz revelou que a leitura da obra do americano Sherwood Anderson (1876-1941) foi tão impactante que o levou às lágrimas ("soluçando de uma felicidade temerosa, em êxtase"), fazendo com que ele descobrisse sua vocação literária. Em seu novo livro, Cenas da Vida na Aldeia, o autor israelense mostra a extensão dessa influência, ao homenagear a estrutura de uma das maiores obras do americano, Winesburg, Ohio. Como este, é um livro que reúne relatos sobre moradores de um lugar imaginário — a vila de Tel Ilan —, em capítulos que podem ser lidos de forma independente. Entretanto, os textos ganham força justamente quando lidos em sequência, encadeados à maneira de um romance.
Amós Oz já declarou em várias entrevistas que sua produção é uma espécie de música de câmara, ou seja, concentra-se em episódios domésticos, nos conflitos familiares. Cenas da Vida na Aldeia segue o mesmo padrão. Não há aqui heroísmos ou grandes acontecimentos, somente a vida que teima em seguir escorrendo, lenta e viscosa. Só o que existe é solidão, frustração, arrependimento, preconceito, incapacidade de se abrir às outras pessoas — lição aprendida por Oz com outro de seus modelos, o russo Anton Tchekhov.
QUESTÃO PALESTINA
Uma médica que espera o sobrinho chegar de ônibus; um adolescente apaixonado pela bibliotecária que, em vez de amá-lo, sente pena; o corretor de imóveis que sonha em comprar um velho casarão do povoado e fraqueja quando a oportunidade enfim surge. São enredos escritos em tom menor, com gosto daquilo que poderia ter sido e não foi. O mais pungente dos capítulos é Os que Cavam, sobre um ex-deputado à beira da senilidade que entra em conflito com a filha quando ela hospeda um jovem árabe em sua casa. Afinal, seria impossível escrever sobre Israel sem falar dos conflitos com os palestinos. Desde os memoráveis romances Não Diga Noite (1997) e A Caixa Preta (2003), Oz toca apenas indiretamente nesse e em outros traumas coletivos, como o Holocausto. Em vez de explorar grandes temas, prefere estudar o modo como se manifestam em gestos de ódio e afeto. Como se fôssemos todos feitos do acúmulo de dores e alegrias.
Jonas Lopes é repórter da revista Veja São Paulo e assina o blog http://gymnopedies.blogspot.com.

O LIVRO
Cenas da Vida na Aldeia, de Amós Oz. Tradução de Paulo Geiger. Companhia das Letras, 184 págs., R$ 38.

Novembro/2009

Amós Oz - Capítulo de "Cenas da Vida da Aldeia"


Os que herdam 

O estranho não lhe era estranho. Alguma coisa em sua aparência repeliu e ao mesmo tempo atraiu Arie Tselnik desde o primeiro olhar, se é que aquele era o primeiro olhar: Arie Tselnik tinha quase a impressão de que se lembrava daquele rosto e dos compridos braços que chegavam aos joelhos, uma lembrança obscura, como se fosse de uma vida anterior. 

O homem estacionou seu carro bem em frente ao portão do pátio, um automóvel empoeirado, de cor bege. E no vidro traseiro, assim como nos vidros laterais, havia um mosaico de adesivos coloridos, toda sorte de exclamações, declarações, alertas e lemas. Ele trancou a porta do carro, mas deteve-se para examinar diligentemente uma porta após outra, verificando se estavam todas bem trancadas. Depois deu uma leve palmada no capô, e logo outra, como se o carro fosse um velho e fiel cavalo que ele prendia à estaca da cerca, sinalizando-lhe com carinhosos tapinhas que a espera não seria longa. Depois disso abriu o portão e dirigiu se à varanda da frente, sombreada por um caramanchão de videiras. Seu andar parecia saltitante e um pouco dolorido, como se pisasse descalço em areia quente. 

De seu lugar, na cadeira de balanço suspensa no canto da varanda, vendo sem ser visto, Arie Tselnik observava o visitante desde que ele estacionara o carro. Mas, por mais que se esforçasse, não conseguia lembrar quem era esse estranho-não-tão-estranho. Onde o encontrara, quando o encontrara? Em uma de suas viagens ao exterior? Nos exercícios militares de reservistas? No escritório? Na universidade? Ou talvez ainda nos tempos de escola? A fisionomia do estranho tinha uma expressão matreira e radiante, como se tivesse conseguido dar um grande golpe e agora se alegrasse com a desgraça alheia. Por trás daquele rosto estranho, ou por baixo dele, delineava-se o esboço impreciso de um rosto conhecido, incomodativo, um rosto inquietante: o rosto de quem já lhe fizera mal alguma vez? Ou, pelo contrário, de alguém a quem você já tivesse feito um mal agora esquecido? 

Como um sonho do qual nove décimos tivessem submergido e só um pequeno pedaço ainda fosse visível. 

Arie Tselnik decidiu então não se levantar do lugar para ir ao seu encontro, mas recebê-lo ali, na cadeira suspensa, na varanda à entrada da casa. 

O estranho avançou em seu andar saltitante pelo caminho sinuoso que levava do portão aos degraus da varanda, seus olhos pequenos a se moverem sem parar da direita para a esquerda, como que preocupado em não se revelar prematuramente ou, ao contrário, como se temesse que um cão feroz pudesse a qualquer momento se lançar sobre ele dos arbustos da buganvília espinhosa que cresciam nos dois lados do caminho. 

O cabelo amarelado já se tornando ralo, o pescoço vermelho cuja pele enrugada e pelancuda lembrava o papo de um peru, os olhos aguados e baços que se agitavam como dedos tateantes, os compridos braços de chimpanzé - tudo nele despertava uma turva sensação depressiva. 

De seu oculto ponto de observação na cadeira suspensa, à sombra dos galhos da videira trepadeira, Arie Tselnik percebeu que o homem era corpulento, mas que fraquejava um pouco, como que só recentemente restabelecido de doença grave, ou como se até pouco tempo atrás fosse gordo e só ultimamente tivesse se encolhido para dentro, se contraído dentro da própria pele. Até o paletó de verão que vestia, com seus bolsos estufados e sua cor bege escura, parecia largo demais, descuidadamente pendurado em seus ombros. Embora fosse fim de verão e o caminho estivesse seco, o estranho se deteve para esfregar bem as solas dos sapatos no capacho ao pé dos degraus. Quando acabou, levantou um pé após outro e verificou se elas estavam limpas. Satisfeito, subiu os degraus e examinou a porta de tela no alto, e, só depois de bater educadamente algumas vezes sem obter resposta, desviou finalmente o olhar e descobriu o dono da casa em seu repouso, numa cadeira de balanço suspensa cercada de grandes vasos de samambaias, sob o arco da parreira que o cobria - e a toda a varanda - de sombra. 

O estranho abriu imediatamente um largo sorriso e quase fez também uma reverência, pigarreou e limpou a garganta antes de começar com uma declaração: “É lindo este lugar de vocês, senhor Tselkin! Espantoso! É a verdadeira Provence do Estado de Israel. Qual Provence! Toscana! E essa sua paisagem! O bosque! Os vinhedos! Tel Ilan é simplesmente a aldeia mais encantadora de todo este Estado tão levantino. Muito bonito! Bom dia, senhor Tselkin. Desculpe, espero não estar incomodando, o senhor tem um minuto?”. 

Arie Tselnik respondeu com um bom-dia seco, e o corrigiu dizendo que seu nome era Tselnik, e não Tselkin. E frisou que 10 sentia muito, mas que aqui não costumamos comprar seja o que for de vendedores. 

“Tem toda razão! Está absolutamente certo!”, bradou o homem enquanto enxugava com a manga o suor da testa, “como podemos saber se estamos diante de um vendedor ou de um vigarista? Ou, Deus nos livre, até mesmo de um criminoso que veio reconhecer o terreno para um bando de assaltantes de residências? Mas eu, senhor Tselnik, na verdade não sou um vendedor. Sou Maftsir!” 

“O quê?” 

“Maftsir. Wolf Maftsir, advogado Maftsir, do escritório de advocacia Lotem-Prodjinin. Muito prazer, senhor Tselnik. Vim aqui, meu senhor, tratar de um assunto, como direi... ou talvez seja melhor não tentar definir o assunto e ir direto a ele. Com licença, posso sentar? Será um esclarecimento mais ou menos pessoal, não me refiro a mim, absolutamente, para meus assuntos pessoais eu de maneira alguma ousaria invadir assim e incomodar sem avisar antes, e de fato tentamos, realmente tentamos, algumas vezes, mas seu telefone é bloqueado e o senhor não se deu ao trabalho de responder a nossas cartas. Por isso decidimos tentar a sorte fazendo uma visita sem avisar, e pedimos muitas desculpas pelo incômodo. Decididamente não é nosso hábito invadir a privacidade do próximo, ainda mais quando esse próximo mora no lugar mais bonito de todo o país. Seja como for, como eu já disse, não se trata só de uma questão pessoal nossa. Não, não, de forma alguma, não. Na verdade, é exatamente o contrário: trata-se de... como formular isso com cuidado?... digamos assim, trata-se de um assunto pessoal seu, meu senhor. Assunto pessoal seu, e não somente nosso. Ou melhor, que diz respeito a sua família. Ou talvez à família de um modo geral, e de modo especial a um parente seu, senhor Tselkin, a determinado parente. O senhor não se opõe a que sentemos e conversemos alguns minutos? Prometo me empenhar ao máximo para que toda a questão não tome mais do que dez minutos. Apesar de que, de fato, isso depende só do senhor, senhor Tselkin.” 

Arie Tselnik disse: 

“Tselnik.” 

E depois disse: 

“Sente.” 

E logo acrescentou: 

“Não aqui. Aqui.” 

Porque o homem gordo, ou ex-gordo, aterrissara primeiro na cadeira de balanço, que era para dois, bem ao lado do anfitrião, coxa com coxa, uma nuvem de cheiros espessos a cercar seu corpo como uma comitiva, cheiros de digestão, meias, talco e axilas. Sobre todos esses cheiros recendia numa fina rede o penetrante aroma de loção de barba. Arie Tselnik lembrou-se de repente de seu pai, que também sempre encobria seus cheiros de corpo com o forte perfume da loção de barba. 

No momento em que lhe disseram “não aqui e aqui”, o visitante se levantou e oscilou um pouco, seus braços simiescos apoiando-se nos joelhos, e desculpou-se e mudou de lugar e arriou seu traseiro - em calças largas demais para ele - no lugar que lhe haviam indicado, sobre o banco de madeira do outro lado da mesa do jardim. Era uma mesa rústica, feita de tábuas de madeira só meio aplainadas, parecidas com os dormentes de uma ferrovia. Para Arie era importante que sua mãe doente, ao olhar pela janela, em hipótese alguma visse esse visitante, mesmo pelas costas, mesmo apenas seu vulto sobre o fundo do caramanchão de videiras. Por isso ele o fez sentar num lugar não visível da janela. E a surdez dela a defenderia daquela voz cheia, voz de cantor de sinagoga. 

Há três anos Naama, mulher de Arie Tselnik, viajara para visitar sua grande amiga Thelma Grant em San Diego, e não voltara. Ela não lhe escreveu dizendo explicitamente que decidira abandoná-lo, mas fez uma insinuação delicada: Por enquanto, não volto. Depois de mais meio ano escreveu, Ainda fico com Thelma. E ainda depois, Não é necessário que você continue a esperar por mim. Estou trabalhando com Thelma numa clínica, de rejuvenescimento. E em outra carta: Eu e Thelma estamos bem juntas, temos um carma semelhante. E de novo escreveu: Nosso guia espiritual acha que o certo para nós é não desistirmos uma da outra. Você ficará bem. Você não está zangado, está? A filha casada, Hila, escreveu-lhe de Boston, Pai, eu lhe proponho, para o seu bem, que não pressione mamãe. Você vai reconstruir sua vida. 

E como entre ele e o primogênito, Eldad, toda ligação havia muito se desfizera, e como além dessa família ele não tinha ninguém próximo, resolvera no ano anterior desmontar o apartamento no Carmel e voltara a morar com a mãe na antiga casa em Tel Ilan, viver do aluguel dos dois apartamentos em Haifa e se dedicar a seu hobby. 

Foi assim que reconstruiu sua vida, como lhe aconselhara a filha. 

Em sua juventude Arie Tselnik servira no comando naval. Desde sua primeira infância não temia nenhum perigo, nem o fogo inimigo nem a escalada de penhascos. Mas com os anos desenvolveu-se nele um agudo pavor do escuro numa casa vazia. Por isso decidira finalmente voltar a morar ao lado da mãe, na velha casa onde nascera e crescera, na extremidade da aldeia de Tel Ilan. A mãe, Rosália, era uma velha com cerca de noventa anos, surda, muito encurvada e de pouca conversa. A maior parte do tempo ela o deixava cuidar dos assuntos caseiros sem perturbá-lo e quase sem dirigir-lhe observações ou perguntas. Às vezes passava pelo pensamento de Arie Tselnik a possibilidade de que sua mãe adoecesse ou envelhecesse a ponto de não poder mais viver sem cuidados em tempo integral, e ele seria então obrigado a dar-lhe de comer, limpá-la e trocar-lhe as fraldas. Ou contratar uma acompanhante, o que acabaria com o sossego da casa, e faria sua vida ser devassada por estranhos. E até chegava a desejar, ou quase, o iminente fenecer de sua mãe: ele teria a justificativa lógica e emocional de transferi la para uma instituição adequada, e toda a casa ficaria a sua disposição. Se quisesse, poderia viver com uma nova e bonita mulher. Ou não viver com uma mulher, e sim hospedar uma série de garotas jovens. Poderia até derrubar paredes internas e renovar o aspecto da casa. Uma nova vida teria início. 

Mas por enquanto viviam os dois, o filho e a mãe, na casa escura, antiquada, em sossego e em silêncio. Toda manhã chegava uma criada, trazendo com ela artigos de primeira necessidade, que comprava de acordo com uma lista; arrumava, limpava e cozinhava, e depois de servir o almoço para o filho e a mãe ia embora silenciosamente. A maior parte do dia a mãe fica em seu quarto lendo livros antigos, e Arie Tselnik, no quarto dele, ouve rádio ou constrói aeromodelos de balsa. 

O estranho sorriu de repente um sorriso insidioso, ladino, um sorriso que parecia uma piscadela: como se propusesse a seu anfitrião, Vem, vamos pecar um pouco juntos? E também, ao mesmo tempo, como a temer que essa proposta lhe valesse um castigo. E perguntou, amistosamente: 

“Perdão, com sua licença, posso me servir disso um pouco, por favor?” 

E, como lhe pareceu que o anfitrião concordara com um aceno de cabeça, de um jarro de vidro que estava sobre a mesa verteu água gelada com uma fatia de limão e algumas folhas de menta no único copo que lá havia - o copo de Arie Tselnik -, colou seus lábios carnudos no copo e o esvaziou todo em cinco ou seis grandes e sonoros goles, e se serviu de mais meio copo que de novo engoliu com uma sede ruidosa e logo se justificou: “Desculpe! Aqui nesta sua linda varanda não dá para sentir como o dia está quente. Hoje está muito quente. Muito! E, no entanto, apesar do calor intenso - assim mesmo este lugar é encantador! Tel Ilan é sem dúvida a aldeia mais bonita do país! Provence! Não Provence! Toscana! Florestas! Vinhedos! Casas campestres de cem anos atrás, telhados vermelhos e ciprestes tão altos! E agora, o que o senhor acha? Prefere que conversemos mais um pouco sobre essa beleza? Ou me permite entrar sem mais rodeios em nossa pequena pauta? 

Arie Tselnik disse: 

“Estou escutando.” 

“A família Tselnik, os descendentes de Lion Akbia Tselnik. Se não me engano vocês estavam entre os primeiros moradores da aldeia, não é? Entre os fundadores mais antigos? Não? Há noventa anos? Ou até mesmo quase cem?”

“O nome dele era Akiba Arie, não Lion Akbia.”

“Claro”, entusiasmou-se o visitante, “a família Tselkin. Respeitamos muito a ilustre história de vocês. Não só respeitamos. Reverenciamos! No início, se não me engano, chegaram os dois irmãos mais velhos, Bóris e Semion Tselkin, que vieram de uma pequena aldeia no distrito de Kharkov para erguer uma comunidade totalmente nova aqui, no coração da paisagem selvagem, nas escalvadas montanhas de Menashé. Aqui não havia nada, apenas uma árida estepe de espinheiros. Nem mesmo camponeses árabes havia neste vale, só do outro lado das colinas. Depois veio também o sobrinho mais jovem de Bóris e de Semion, Lion ou, se você insiste, Akbia-Arie. E depois, pelo menos de acordo com a versão corrente, Semion e Bóris levantaram acampamento e voltaram, um após outro, para a Rússia, e lá Bóris matou Semion com um machado, e só o seu avô, senhor Tselkin - avô? ou o pai do avô? -, só Lion Akbia teimou em ficar aqui. Não é Akbia? Akiba? Perdão, Akiba. Resumindo, é o seguinte: acontece por acaso que nós, os Maftsir, nós também somos da região de Kharkov! Exatamente das florestas de Kharkov! Maftsir! O senhor não ouviu falar? Tínhamos um chazan* muito conhecido, Shaia Leib Maftsir, e havia um Gregori Moiseievitch Maftsir, grande general do Exército Vermelho. Um general muito muito importante, mas Stálin o matou. Nos expurgos da década de 30.” 

O homem levantou-se e encenou com seus dois braços simiescos a postura de um fuzileiro num pelotão de fuzilamento, imitou o matraquear de uma rajada de balas, expondo com isso incisivos afiados mas não totalmente brancos. E voltou a sentar-se no banco sorrindo, como que satisfeito com o sucesso da execução. Arie Tselnik teve a impressão de que o homem talvez esperasse uma salva de palmas, ou pelo menos um sorriso, em retribuição ao sorriso adocicado dele. 

O anfitrião no entanto preferiu não retribuir sorriso algum. Ele afastou para um lado o copo usado e o jarro de água gelada que estavam sobre a mesa e disse: “Sim?” O advogado Maftsir então apertou as próprias mãos, empunhando a esquerda com a direita com força, como se há muito tempo não tivesse se encontrado consigo mesmo e como se esse * Cantor de sinagoga, em hebraico. 

encontro inesperado lhe causasse grande satisfação. Por baixo das abundantes e fluentes palavras de sua boca aflorava, sem parar, um interminável manancial de alegria, uma torrente de euforia e de regozijo consigo mesmo: “Bem, comecemos talvez, como se diz, a pôr as cartas na mesa. A razão pela qual me permiti invadir seu espaço hoje diz respeito a assuntos pessoais entre nós, e, além disso, talvez também diga respeito a sua querida mamãe, que ela viva até cento e vinte anos... Quer dizer, a essa idosa e muito honorável senhora. Mas, é claro, é claro, somente com a condição de que o senhor não tenha especial oposição a que comecemos a tratar desse assunto delicado.” 

Arie Tselnik disse: 

“Sim.” 

O visitante levantou-se de seu lugar, despiu o paletó bege em tom de areia suja, revelando as grandes manchas de suor que se desenhavam na região das axilas de sua camisa branca, pendurou o paletó no encosto da cadeira, voltou a sentar-se, espalhado, e disse: “Perdão. Espero que não se importe. É que hoje faz muito calor. Permite que eu também tire a gravata?” Por um momento parecia um menino assustado, um menino consciente de que merece uma admoestação e assim mesmo se envergonha de pedir perdão. Mas logo essa expressão desapareceu de seu rosto. 

Quando o anfitrião permaneceu calado, o homem, de um só puxão, tirou sua gravata - um movimento que fez Arie Tselnik se lembrar de seu filho Eldad - e propôs: 

“Enquanto sua mamãe for um peso para nós aqui, não poderemos realizar o patrimônio.” 

“Perdão?” 

“Só se encontrarmos para ela uma excelente condição numa instituição muito excelente. E eu tenho uma instituição assim. 

Quer dizer, não é minha, mas do irmão do meu sócio. Só precisa ter a anuência dela. Ou talvez seja mais fácil nós obtermos um atestado de que fomos nomeados seus tutores. 

Então não seria necessário ter o consentimento dela.” 

Arie Tselnik acenou, anuindo, duas ou três vezes, coçou com as unhas da mão direita as costas da mão esquerda, bem que ultimamente lhe ocorrera meditar uma ou duas vezes sobre o futuro de sua mãe doente, o que seria dela e dele quando ela se tornasse dependente, física e mentalmente, e quando chegaria o momento de tomar uma decisão; havia momentos em que alimentava a possibilidade de se despedir de sua mãe com tristeza e vergonha, mas também havia outros momentos nos quais quase esperava o cada vez mais próximo declínio dela, e as possibilidades que se abririam para ele quando ela saísse da casa. Uma vez quase convidara Iossi Sasson, agente imobiliário, para avaliar a propriedade. Essas sufocadas esperanças despertavam nele sentimentos de culpa e até asco de si mesmo. Mas lhe parecia bizarro que este homem repulsivo pudesse ler algo de seus vergonhosos pensamentos. Pediu, pois, ao senhor Maftsir, que voltasse um instante ao começo - quem exatamente ele representava? Da parte de quem fora enviado para cá?

Wolf Maftsir deu um risinho: 

“Maftsir. Chame-me simplesmente Maftsir. Ou Wolf. Pois entre parentes é totalmente desnecessário o tratamento de senhor.” 

Arie Tselnik levantou-se. Era um homem muito maior, mais largo e mais alto do que Wolf Maftsir, e seus ombros eram grossos e fortes, mas ambos tinham braços compridos que chegavam até os joelhos. Ao se levantar deu dois passos, ficou de pé em toda sua estatura, acima do visitante, e disse: 

“Então, o que você quer.” 

Pronunciou essas palavras sem ponto de interrogação, enquanto abotoava um botão da camisa, cuja abertura deixava ver um peito grisalho e cabeludo. 

Wolf Maftsir pipilou numa vozinha pequena, conciliatória: 

“Para que nos apressarmos, meu senhor? Nosso assunto deve ser tratado com cuidado e paciência, por todos os ângulos, para que não deixemos nenhuma brecha, nem mesmo uma rachadura; não podemos errar em nenhum detalhe.” 

O visitante, para Arie Tselnik, tinha um aspecto depauperado ou um pouco enfraquecido. Parecia que sua pele era grande demais para ele. O paletó negligentemente jogado em seus ombros lhe parecera o paletó de um espantalho no jardim. E seus olhos eram aquosos, e também um pouco opacos. Além disso, algo nele denotava medo, como se temesse uma súbita ofensa. 

“Nosso assunto?” 

“Quer dizer, o problema da velha senhora. Quer dizer, a senhora sua mãe, nossos bens ainda estão registrados em nome dela e estarão registrados em nome dela até o fim de seus dias, e quem é que sabe o que pode lhe dar na cabeça para pôr no testamento, até que consigamos nós dois sermos nomeados tutores dela.” 

“Nós dois?” 

“Pode-se demolir esta casa e erguer em seu lugar uma clínica ou uma academia. Podemos abrir aqui um lugar que não existe igual em todo o país: ar puro, um sossego pastoral, uma paisagem campestre que não fica a dever à da Provence e da Toscana, ervas medicinais, massagens, meditação, orientação espiritual, as pessoas pagarão um bom dinheiro pelo que este nosso lugar poderá lhes proporcionar.” 

“Perdão, desde quando exatamente nós nos conhecemos?” 

“Mas já nos conhecemos e somos amigos. Não só amigos, meu caro: parentes e até mesmo sócios.” 

Ao se levantar, talvez Arie Tselnik tenha tido a intenção de com isso fazer o visitante se sentir obrigado a se levantar também, ir embora e seguir seu caminho. Mas ele não se levantou e continuou sentado em seu lugar, e até estendeu a mão e serviu--se de mais um copo de água gelada com uma fatia de limão e folhas de menta, no copo que fora de Arie Tselnik até o estranho o confiscar para si. Ele agora recostava-se na cadeira, em sua camisa manchada de suor nas axilas, sem o paletó e a gravata. Wolf Maftsir parecia um comerciante dono de todo o tempo do mundo, um suado comerciante de gado que fora ao campo para tratar com os camponeses, com paciência e astúcia, um negócio com o qual, disso estava convencido, as duas partes lucrariam. Havia nele certa alegria oculta e vingativa, uma espécie de alegria maldosa que era de todo estranha ao anfitrião. “Eu”, mentiu Arie Tselnik, “preciso entrar agora, para resolver um assunto. Desculpe.”

“Eu”, sorriu Wolf Maftsir, “não tenho pressa. Com sua licença, vou ficar aqui sentado esperando. Ou talvez seja melhor eu entrar também, para conhecer a senhora. Afinal, preciso conquistar depressa a confiança dela.” 

“A senhora”, disse Arie Tselnik, “não recebe visitas.” 

“Eu”, teimou Wolf Maftsir, levantando-se também, pronto para acompanhar seu anfitrião e entrar na casa, “não sou exatamente uma visita. Porque nós, como dizer, somos um pouco parentes, não? E até mesmo sócios?” 

Arie Tselnik lembrou-se de repente do conselho de sua filha, Hila, de que desistisse da mãe dela, não se esforçasse em fazê-la voltar e tentasse começar uma nova vida. E a verdade é que ele nem se esforçara muito para fazer Naama voltar: quando ela foi embora e viajou ao encontro de sua grande amiga Thelma Grant, depois de uma briga feia entre eles, Arie Tselnik empacotou todas as roupas e coisas dela e as enviou para o endereço de Thelma em San Diego. Quando seu filho Eldad cortou relações com ele, empacotou e enviou para Eldad os livros dele e até seus brinquedos da infância. Limpou toda e qualquer lembrança, como se limpam os postos e as trincheiras do inimigo no fim da batalha. Alguns meses depois empacotou também suas próprias coisas, desmontou o apartamento em Haifa e veio morar com a mãe aqui, em Tel Ilan. Mais que tudo, procurava para si mesmo um sossego total: que os dias fossem iguais uns aos outros, e todas as horas livres.

Às vezes saía para longas caminhadas em torno da aldeia e até fora dela, por entre as colinas que circundavam o pequeno vale, nos pomares de frutas, nos sombrios bosques de pinheiros. Ou, outras vezes, ficava vagando meia hora pelo quintal, entre os remanescentes do sítio do pai, abandonado havia muitos anos. Ainda havia ali algumas cabanas aos pedaços, galinheiros, telheiros de lata, um palheiro, um estábulo abandonado para criação de novilhos, a estrebaria agora usada como depósito, onde se amontoavam todos os móveis do apartamento que fora desmontado no Har Hacarmel, o bairro alto de Haifa. Ali, na antiga estrebaria, acumulavam poeira as poltronas e o sofá e os tapetes e o bufê e a mesa de centro de Haifa, todos ligados entre si por finas redes de teias de aranha. Também a antiga cama de casal dele e de Naama fora enfiada ali, de pé sobre um dos lados, no canto da estrebaria, e o colchão estava enterrado sob uma pilha de edredons empoeirados. 

Arie Tselnik disse: 

“Desculpe, mas estou ocupado.” 

Wolf Maftsir disse: 

“Claro. Perdão. Não vou atrapalhar, meu caro, de forma alguma quero atrapalhar. Ao contrário. A partir deste momento vou ficar calado, não darei um pio sequer.”21 E com isso levantou-se e marchou nos calcanhares de seu anfitrião para o interior da casa, que estava fresco, na penumbra, com um cheiro de suor e velhice a flutuar nele. Arie Tselnik insistiu: 

“O senhor me espere, por favor, do lado de fora.” 

Apesar de na verdade pretender dizer, com alguma grosseria, que aquela visita havia terminado e que ele estava convidado a se retirar. 

Só que o visitante nem sonhava em se retirar. Ele deslizou para dentro atrás de Arie Tselnik e no caminho, ao longo do corredor, abriu porta por porta, examinou calmamente a cozinha, a biblioteca, o quarto dos hobbies de Arie Tselnik, com os leves aeromodelos em balsa pendurados no teto por fios resistentes, a balançarem levemente ao vento como se quisessem travar entre eles cruéis combates aéreos. Com isso fez Arie Tselnik lembrar--se de seu próprio costume, costume de infância, de abrir toda porta fechada para investigar o que se escondia por trás dela. 

Quando os dois chegaram à parte mais interior da casa, no fim do corredor, Arie Tselnik postou-se para barrar com o corpo a entrada de seu quarto, que fora uma vez o quarto de seu pai. Mas Wolf Maftsir não tinha a menor intenção de invadir o quarto de seu anfitrião, e bateu delicadamente à porta da velha surda, e ao não receber resposta, pôs sua mão, como numa delicada carícia, na maçaneta da porta, abriu-a suavemente, entrou e viu a mulher, Rosália, deitada e coberta até o queixo com um cobertor de lã, no meio da larga cama de casal, a cabeça envolta numa rede, os olhos fechados, e seus maxilares ossudos, desdentados, a se mover, como se moessem sem parar. 

“Do jeito que sonhamos”, sorriu Wolf Maftsir, “shalom, cara senhora, tivemos muitas muitas saudades, e muito ansiávamos por vir ter com a senhora, a senhora com certeza está muito contente de nos ver, não?” 

E então curvou-se sobre ela e beijou-a duas vezes, dois longos beijos em suas duas faces e ainda lhe colou um beijo na testa, até que a velha abriu seus olhos embaçados e tirou uma mão esquelética, ossuda de sob o cobertor e a deslizou na cabeça de Wolf Maftsir e balbuciou algo e algo mais, e sua outra mão também surgiu do cobertor, e com as duas mãos ela atraiu para si a cabeça dele, e ele lhe correspondeu e se inclinou mais e tirou os sapatos deixando-os ao pé da cama, e se curvou e beijou-lhe a boca desdentada e deitou se a seu lado na cama e puxou sobre si as beiradas de seu cobertor e se cobriu também e disse, isso, assim, e disse ainda: shalom, minha caríssima senhora. 

Arie Tselnik hesitou por alguns momentos, olhou para a janela aberta através da qual se podia ver um dos telheiros abandonados do sítio e também um cipreste empoeirado no qual trepava, com seus dedos ardentes, uma buganvília alaranjada. Ele contornou a cama do casal, cerrou a veneziana e fechou a janela, e também correu os dois panos da cortina, e enquanto fechava e escurecia tudo abriu os botões da camisa e desafivelou o cinto, descalçou também os sapatos, despiu-se e deitou-se na cama ao lado de sua velha mãe, e assim ficaram os três deitados, a senhora dona da casa entre seu filho silencioso e o homem estranho que não parava de acariciá-la e beijá-la, enquanto sua boca murmurava suavemente, Tudo aqui ainda vai ficar bem, minha muito querida senhora, tudo aqui ainda vai ficar uma beleza, nós vamos dar um jeito em tudo. 

Nenhum comentário:

Postar um comentário