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quarta-feira, 14 de setembro de 2011

Reflexões sobre o romance moderno


ROSENFELD, Anatol. Reflexões sobre o romance moderno.In: Texto/Contexto.São Paulo: Perspectiva,1969,pp.75 a 97.

O processo da dissolução ou Entromantsierung, como chamou Hugo Friedrich, vem atuando na cultura e em diversos campos afins há mais de meio século. Em Dom Quixote , de Cervantes, já se via indícios da desilusão do homem ,que depois de se imaginar protegido dos deuses ou o centro de todas as coisas, percebe-se fragmento. Sem a perspectiva da totalidade e repleto de indagações, o indivíduo se sente debilitado frente ao mundo complexo e multifacetado em que vive. Esse fenômeno pôde e pode ser presenciado em diversos meios, sejam eles artísticos ou não. Mas, existiria realmente um Zeitgeist, espírito capaz de unificar diversos campos ligados à cultura, a tendências estéticas semelhantes numa mesma época ?
Esta é uma das três hipóteses que Anatol Rosenfeld, conceituado crítico literário, analisa em "Reflexões sobre o romance moderno", ensaio contido no livro Texto e Contexto, que teve sua primeira edição em 1969. Dividido em três macro tópicos que se subdividem em ensaios de acordo com o tema. "Reflexões sobre o Romance moderno" , não por acaso, encontra-se em " Reflexões Estéticas", o que elucida bem o debate sugerido acerca do Zeitgeist. Outras duas hipóteses são desenvolvidas pelo autor, que ao abordar as transformações artísticas da cultura ocidental, discorre sobre o processo da dissolução da estética realista, assim como algumas possíveis causas deste fenômeno que, de alguma forma, apresenta-se semelhante em campos considerados autônomos entre si, tais como : pintura, teatro e literatura .
O ensaio reflete , dentre outras coisas, como esse "espirito unificador", "há mais de meio século" espelha, por meio da arte, as diferenças sociais e oscilações da sociedade burguesa geradas essencialmente pelo capitalismo industrial e liberalismo econômico. Sem o tom historiográfico, mas com ampla abordagem histórica, Rosenfeld traça um panorama dos tempos, do homem e da arte ,principalmente, a partir da primeira metade do século XX.
Se, como afirmara Wolfgang Kayser, o romance caracteriza-se pelo "tempo, espaço e personagem" e tem o narrador como "principio formal essencial", a segunda hipótese apontada no ensaio, norteia o leitor sobre alguns fatores que poderiam ter influenciado e hegemonizado uma tendência de "desromantização": Numa sociedade em que o progresso econômico e tecnológico solapa a consciência coletiva em nome de uma ética individualista, o homem percebe-se desamparado meio a estruturas falíveis, e tal como um caramujo, volta para dentro de si no afã de compreender sua contemporaneidade. Uma das constatações do Zeitgeist desta época é a impossibilidade conciliatória do tempo objetivo, de uma sociedade que busca a produção material, com o universo subjetivo e imaginário de seus integrantes.
A partir deste ponto de vista, podemos entender a recusa da mimesis como mais um reflexo da não aceitação de uma realidade, considerada então, coercitiva. O homem percebe-se mais amplo do que formas "retratáveis". Os estados da alma exigem "a deformação das aparências" e o retrato não evidencia mais uma realidade. É a metamorfose (na arte) do indivíduo que se vê abandonado e incapaz de modificar o meio em que vive, e que não mais apresenta-se como agente (sujeito) mas antes, mero fragmento (objeto).
A sociedade, apesar de complexa , assume uma ótica particularizada e vertical, perdendo com isso, as múltiplas faces da perspectiva .O homem moderno estupefato ,num primeiro momento, pelo turbilhão de sensações internas, solitárias e incompreensíveis, (bastante representado pelos surrealistas adeptos da escrita automática) desenvolve a expressão distorcida, e as formas precisas passam a ser entendidas como ilusões representativas de algo abstrato e portanto falsas. Segundo Rosenfeld , a perspectiva reflete por si um ponto de vista, "uma visão antropocêntrica do mundo", impossível na idade média, em que o "o homem tem uma posição fixa no mundo e não uma posição face a ele" e difícil na atualidade, não mais pela falta de distanciamento frente ao mundo , mas pela imersão do indivíduo em si mesmo, representado pelo fluxo da consciência..
A segunda hipótese, portanto, analisa a recusa da arte ilusionista que não mais imita e nem tampouco representa , mas expressa algo. No teatro , os espetáculos rejeitam apresentarem-se como uma "fatia da realidade", o espaço cênico é modificado e se ainda mantêm-se em espaços tradicionais ( palcos à italiana) "destroem" a "quarta parede". Nos refletores as gelatinas coloridas são substituídas pela "geral" branca que chapa a encenação . É o teatro que confessa-se teatro .
A terceira hipótese e a mais relevante , visto que as duas primeiras mais situam e encaminham o leitor à esta, evidencia como o desenvolvimento do capitalismo de organizações e da sociedade de consumo alteraram a estrutura do romance e como esse fenômeno foi percebido . Rosenfeld relata que, embora a literatura também tenha composto o Zeitgeist contemporâneo, por uma exigência mercadológica as evidências não foram tão alarmantes quanto, por exemplo, na pintura. "O romance tradicional ainda hoje vende mais". Este fenômeno contudo é bastante claro partindo do pressuposto que a manutenção da "ordem instituída" é de grande interesse das camadas detentoras do poder econômico e consequentemente dos meios de comunicação, tão fundamentais para a predominância do "gosto popular". Portanto, não teríamos razões para acreditar que uma literatura inquisidora dos valores da classe burguesa não somente no tema, mas principalmente na forma , venha a interessar aos mantenedores desta mesma classe (burguesa). Podemos com isso constatar que as barreiras por meio das quais são impedidas as reformulações dos gostos literários assemelham-se às barreiras enfrentadas pelo rompimento das estruturas sociais. Entretanto, mesmo não se tornando Best Sellers , a literatura vanguardista desenvolve-se contrária à consciência burguesa, apesar de estar diretamente ligada à sua história e a seu desenvolvimento. Tal como escreve Adorno "...essas dificuldades estão relacionadas essencialmente ao lugar da arte na sociedade e não desaparecem pelo simples fato de ninguém se ocupar delas".
Diferente da epopéia, quando tínhamos fortes laços de sangue , reinos que agrupavam centenas de pessoas que compartilhavam um mundo "seguro e ordenado", no romance, os homens vivem em cidades , necessariamente mais isolados. Os laços de sangue não significam tanto, e a multiplicidade de espaços e sensações revelam também uma concomitância de acontecimentos, que se retratam na forma da narrativa. O homem moderno percebe a simultaneidade da vida e com ela a impossibilidade da narrativa seqüencial conseguir expressar as "multi-experiências" concomitantes do cotidiano. No descompasso dos tempos o homem moderno vive , mas não compreende, a ponto de organizar e ajuizar seus atos e idéias. O narrador que antes tudo sabia, agora se vê também vítima do acaso, e esta imprevisibilidade retira sua "posição privilegiada". Esta é mais uma característica da narrativa moderna: a dissolução do narrador onisciente.
"Desaparece o intermediário, substituído pela presença do fluxo psíquico" . O homem é um armazenamento integral de tudo o que viveu ,passado e presente são um tempo só sem distinção de início ou fim. Tal como um acorde musical, o presente constitui-se em um bloco, contudo, em desarmonia. A tentativa da revelação objetiva ,faz com que a narrativa seja em tom de relato, feito pelo próprio eu que vivencia, e como sua experiência não tem origens definidas, apresenta-se quase sempre difusa e indeterminada. Muitas vezes nem mesmo o verbo se modifica ao tratar-se de passado, presente e futuro. A desorganização do subconsciente é representada na "desestrutura" também da narrativa. Nada mais é absoluto quando o mundo torna-se caótico. Este princípio é evidente nas manifestações artísticas. Se o homem moderno tem obrigações com a cronologia , a arte não "bate cartão". A música não segue mais os limites da harmonia (tonal) . Os pontos de vista são diversos e a objetividade , portanto, múltipla .
Rosenfeld, ao contrário de Wolfgang Kayser, considera lícito a supressão do narrador , posto que este colocaria "ordem" quando esta apresenta-se bastante questionável. Todavia salienta também, que o desejo de objetividade levou a um "recorte" tão minucioso da psique, que o todo não pode mais ser representado. "Trata-se, no fundo, de uma radicalização do romance do século passado". Tal como escreveu Freud , o inconsciente é o caos por excelência , portanto, no processo de verticalização, estreitou-se o panorama. As palavras não são vistas como capazes de expressar a experiência ou suprir a angústia pela falta dela ( da experiência).
O desenvolvimento do behavorismo caracterizou bem o homem que vive numa sociedade de classes. Foi a partir das "forças produtivas" que a "estética do objeto" prevaleceu frente a dissolução do indivíduo. Brecht, profundamente influenciado por esta Escola, escreveu Um Homem é um Homem , em que o sujeito apresenta-se despersonalizado e desprovido de individualidade. O personagem é somente um arquétipo que se dissolve no genérico. Todos são movidos por fatores externos. Não tem psicologismo.
Podemos, contudo, deter-nos aos exemplos do ensaio que são muito bem colocados. Ao citar o tribunal de Kafka, em que, o personagem alienado do sistema arbitrário de compreensão inacessível, remete-nos em grau de igualdade, à "impossibilidade de reencontrar a unidade perdida", e afirma o aniquilamento do homem moderno em duas estâncias, sendo elas: o mundo que "criou" e pelo qual "foi criado". Josefh K. resigna-se a arbitrariedade sem pensar na causas, pois a esta desvinculou-se por completo de suas conseqüências.
"O indivíduo dissolve-se na polifonia de vastos afrescos" O olhar antes verticalizado se expande, torna-se horizontal, amplo e "achatado". Caracteriza-se assim a dissolução do uno, tudo são fragmentos que se interagem simultaneamente, mas que nunca se encaixam.
Embora Rosenfeld advirta que suas hipóteses não se caracterizam como uma teoria , mas um convite a reflexões, o que percebemos é um brilhante ensaio, que analisa a arte da primeira metade do século XX, inserida no contexto histórico e portanto "vítima" também dos fenômenos sociais. Ao chegarmos no último tópico, temos a convicção de que o Zeitgeist é um fato, visto que a arte mesmo que almeje , não é autônoma do mundo em que vive, mas antes, reflete com os meios que lhes são inerentes , os efeitos dos movimentos e conflitos de cada período. Embora a manifestação artística, de um modo geral, não tenha a pretensão ou almeje envolver-se diretamente em busca de soluções sociais, ela sabe da importância de sua atuação junto aos agentes capazes de produzir tais mudanças .
É fato, que este "espírito unificador" a partir nesta última década do séc. XX expandiu-se , assim como a sociedade, abarcando mais tendências que estilos propriamente ditos, mesmo porque, as ambigüidades refletem uma época de multi-polarizações das camadas sociais encobertas por uma pseudo hegemonia denominada "globalização". Mais uma vez a arte denuncia. Enquanto o mundo finge tornar-se um só bloco, ela apresenta-se fragmentada
(quando preservadora de valores culturais) ou totalmente cooptada pela cultura de massas. O Zeitgeist contemporâneo reflete sobretudo a instabilidade de um sistema político-econômico que não tendo mais a ameaça externa (socialismo-capitalismo),vê-se obrigado a enfrentar as fraturas reais e problemáticas dentro do próprio modelo, que tal como o romance burguês, apresenta-se em franco processo de dissolução.

ROSENFELD, Anatol. Reflexões sobre o romance moderno. In: Texto/Contexto.São Paulo: Perspectiva,1969,pp.75 a 97.

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