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domingo, 19 de setembro de 2010

A elite paulista não pode mais

Paulo Ghiraldelli(*)
O centro da oposição a Vargas deslocou-se de São Paulo para o Rio após o fim do Estado Novo. Diferentemente dos anos 30, nos anos 50 não eram mais as elites paulistas que pregavam contra o varguismo e, sim, Carlos Lacerda, com forte apoio em parte da classe média carioca. Portanto, era no centro do poder, bem na capital do Brasil, que Vargas tinha sua pior pedra no sapato. Todavia, São Paulo jamais engoliu o varguismo. Quando em 1964 a UDN, aliada aos militares, provocou o golpe contra Jango – o herdeiro “comunista” de Vargas –, as passeatas de parte da classe média paulista pela “família”, pela “moralidade” e “contra o comunismo”, que serviram de pré-apoio aos golpistas, não foram pequenas. Essa ação paulista era, em parte, uma ação antivarguista.
O ciclo de presidentes militares de 1964-1985 não interrompeu o percurso da elite paulista conservadora aliada a uma classe média que tentava imitá-la. Essa elite se acomodou muito bem ao novo regime e, rapidamente, passou a oferecer aos militares a parte de sua intelectualidade mais decididamente conservadora. O “milagre econômico” do Regime Militar foi obra (falsa) de um professor da USP, Delfim Neto. Ele sabia fazer artigos contra o marxismo, totalmente inúteis do ponto de vista da economia prática, mas muito válidos para se manter no poder. Esses artigos conquistavam as mentes pouco educadas dos militares e da classe média reacionária.
Nos anos 70 e 80, atacar o marxismo já não significava mais nada para boa parte dos economistas que, sabiam bem, tratava-se de uma doutrina morta do ponto de vista do que se discutia no mundo em termos de sobrevivência (Welfare State versus Liberalismo tinham conseqüências práticas que o marxismo não abordava do melhor modo). No clube dos intelectuais mais cosmopolitas, o marxismo já não era uma leitura oficial. Mas, do ponto de vista político doutrinário, nossa esquerda, em parte capitaneada no PMDB e no proto-PT, só se organizava por meio de uma militância que não tinha recebido outra educação senão a de folhear o Manifesto Comunista. Assim, “para inglês ver” (ou, para militares verem), gente como Delfim Neto, uma vez no governo ou próximo, mantinha teatralmente esse discurso anticomunista que os fazia ter o mesmo status, diante dos militares e da elite paulista reacionária, que um Florestan Fernandes tinha à esquerda.
Assim, a elite paulista, em sua maior parte conservadora, se educou e se projetou na história sob esse registro de antivarguismo e de anticomunismo.
O varguismo representava para tal elite a ligação com os pobres, em relação aos quais ela sempre teve um sentimento complexo. Brizola, herdeiro de Jango e, portanto, de Vargas, jamais conseguiu ter votos em São Paulo ou mesmo construir o PDT em terras paulistas. Os pobres – eis aí o que a elite paulista nunca conseguiu buscar compreender.
Um setor da elite paulista não muito brutalizada, a que não queria simplesmente eliminar os pobres por meio de esquadrões de extermínio, seccionou-se em três partes: uma adorava dar esmola; outra parte amava dar esmola, mas com um aviso ao pobre: “não vá tomar pinga” (querem que o pobre poupe, com cada 30 centavos da esmola), e uma terceira parte queria dar esmola contanto que os 30 centavos viessem do Estado, principalmente dos impostos tirados da classe média baixa.
Com o fim do comunismo e com a baixa do marxismo até mesmo como doutrina política, diminuiu as possibilidades dos teóricos servidores dessa elite. Pois sobrou pouco para eles comentarem. Afinal, falar do que? Falariam mal do MST. Seria uma forma de atacar o que teria restado do comunismo? Ora, mas falar mal do MST todo dia, cansaria demais! Isso reduziria o número de leitores.
Na verdade, sobrou para o encanto da elite paulista conservadora apenas o discurso da moralidade, o que Carlos Lacerda havia feito muito bem contra Vargas. Ou seja, com o fim do comunismo sobrou para a elite paulista o discurso moralista que foi usado contra Vargas. Esse discurso, no entanto, não tinha mais alvo, uma vez que a política brasileira havia já ficado sem Brizola, antes mesmo dele morrer.
Mas aí, então, Lula começou a se deslocar de modo bem mais rápido que até então para uma posição mais próxima do varguismo. Ampliou bases populares para ser presidente. Uma vez no poder, principalmente no segundo mandato, desenvolveu um novo populismo, com bases em programas mais institucionalizados quanto ao apoio social. Além disso, não tendo o mesmo passado autoritário de Vargas, teve mais facilidade de compor uma articulação que, diga-se de passagem, Brizola nunca conseguiu, ou seja, trazer para si o PMDB. Com a morte de Brizola, então, abocanhou fácil o PDT.
Ao fazer isso, Lula fixou-se no poder de modo mais tranqüilo, mas também se transformou no alvo natural da elite paulista conservadora. Afinal, aproximando-se do varguismo, ele atraiu para si o discurso de oposição já preparado contra o varguismo, o moralismo udenista, agora passado para as mãos da elite paulista.
A revista Veja, por meio de Reinaldo de Azevedo e Diogo Mainardi, ocupou esse lugar próprio da direita. No banco de reservas ficaram Neumane Pinto e Arnaldo Jabor. Triste! A elite paulista teve de substituir Delfim Neto, da USP, por jornalistas – foi uma perda de qualidade, sem dúvida.
O governo, cujo populismo varguista se incorporou ao lulismo democrático, respondeu por um meio também utilizado por Vargas: o jornalismo pago. O governo logo viu que podia controlar a imprensa não pela censura, mas pelo dinheiro. Os jornais diminuíram suas críticas ao verem que o financiamento estatal podia ser cortado ou deslocado. Além disso, o governo capitaneou para o seu lado gente ávida por grana e pouco afeita à verdade, como Luís Nassif. Em pouco tempo, por ação da oposição à direita e pelo governo, perdemos uma boa parte da imprensa livre. Ou melhor, perdemos na imprensa o jornalismo inteligente. Claudio Abramo teria náuseas perto disso tudo.
Todavia, duvido da necessidade desse pessoal para o próprio governo, ou seja, de gente da imprensa paga.
Do mesmo modo que Vargas sempre conseguiu bater a UDN e a elite paulista, Lula atuou exatamente nesse sentido. Jogou fora toda e qualquer ideologia mais sofisticada e aplicou uma regra simples do varguismo: elevação dos mais pobres a uma condição melhor, estável ou aparentemente estável. Em outras palavras: fez um setor marginalizado sentir o gostinho do capitalismo na sua face atrativa: consumo, emprego, capacidade de sonhar com casa própria e carro. A idéia de casa própria e do emprego dá o sabor (falso ou verdadeiro, não importa) de estabilidade; a idéia de carro dá o sabor (falso ou verdadeiro, não importa) de liberdade. Com isso, aqueceu a economia e, então, trouxe para si parte dos empresários. Não mexeu com lucros de banqueiros, ao contrário, os ampliou com o aquecimento da economia. Com isso, não foi difícil para Lula – e ele sempre soube que poderia eleger “um poste” assim fazendo – carrear o seu prestígio para uma desconhecida. Eis aí o voto em Dilma que, segundo as pesquisas, a fará presidente daqui uns dias.
O voto para José Serra é o do moralismo, o da já denunciada falta de ética reinante no governo. Esse discurso não dá voto, ao menos não nas mãos de gente que não é Collor ou Jânio. Além do mais, José Serra não consegue parecer sincero nessa sua denúncia, pois o PSDB tem telhado de vidro em termos éticos – no Brasil todo seu rosto não é tão diferente daquele do DEM. Sendo assim, se esse discurso, que já é fraco por si mesmo no quadro atual, em que a população vota pela ideologia do bolso, da barriga e da liberdade possível, torna-se completamente inócuo. Quanto mais denúncias de Serra contra Lula e Dilma, pior para ele. A elite paulista conservadora não pode mais. Mas, creio, não vai aprender isso e irá continuar esperneando. A sorte do Brasil é que agora não há mais militares para chamar.
O voto para Dilma é um cheque em branco de nossa população para Lula. Mas Lula, em 2005, era o homem para quem ninguém daria um cheque, nem mesmo assinado. Lembram-se? Isso não quer dizer que “o brasileiro não tem memória”, mas que o brasileiro quer viver bem e premia qualquer governo que lhe dê um mínimo de esperança de assim fazê-lo. Novidade isso? Não. Mas, para a elite paulista e para o PSDB isso não cabe.  Não entra na cabeça deles que o pobre queira oportunidade de deixar de ser pobre. Para eles, o pobre, se ganha algum dinheiro, gasta tudo e volta a ser pobre. A elite paulista é durinha de cabeça no entendimento da sociologia. Ela ficou nas mãos com um revolver sem balas, o do antivarguismo.
(*) Paulo Ghiraldelli Jr., filósofo, escritor e professor da UFRRJ.

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